Sunderland e a decadência do Norte
Sunderland, Newcastle, Blackburn e até mesmo o Leeds Utd como prova da decadência de uma região que costumava ser potência no futebol inglês
Em vários aspectos, a história da Inglaterra no último século pode ser contada através da ascenção econômica de Londres e o arredores, e o relativo declínio do norte do país. O mesmo pode ser dito em relação ao futebol inglês. Na temporada inaugural da liga inglesa, em 1888, seis dos 12 times eram do condado de Lancashire (Blackburn, Burnley, etc.) e nenhum dos times estava ao sul de Birmingham – de fato, o primeiro título no sul da Inglaterra aconteceu somente em 1931, com o Arsenal.
Durante um século, “o futebol era uma das poucas instituições que revertiam a usual dinâmica de poder, riqueza e influência entre o Norte e o Sul”, escreveu David Goldblatt no livro The Game of Our Lives: The Meaning and Making of English Football. Até hoje, nada menos que 83 dos 122 títulos da liga inglesa foram vencidos por um time ao norte do país. Ultimamente, porém, a baixa performance pode ser vista como uma metáfora do declínio econômico da região.
Obviamente, é necessário fazer um certo esclarecimento.
Embora os quatro times de Manchester e Liverpool ainda sejam grandes forças do norte no futebol inglês, as duas metrópoles jamais sofreram os mesmos danos socioeconômicos de outras regiões, principalmente os condados “shire” - Lanchasire e Yorkshire. As duas cidades tiveram, inclusive, um grande boom econômico nas últimas décadas por diversos fatores, como expanção de Universidades e altos-salários no setor financeiro e de serviços (bares, shopping, etc). Em 2018, a região de Merceyside (Liverpool) teve o maior indíce de crescimento do Reino Unido, e a Grande Manchester aparecia em segundo. As duas cidades também tem um sistema de transporte muito mais conectado com o resto da Europa.
Mas o desempenho do nortão raiz, bem mais lá pra cima de Liverpool e Manchester, e perto da Escócia, tem caído como nunca antes na história. Nas últimas cinco temporadas, em quatro delas um time da região foi rebaixado, incluindo o Sunderland em 2016/17 (que depois afundaria ainda mais) e o Huddersfield Town, em 2018/19, a segunda pior campanha na história da Premier League. O próprio Newcastle, rival do Sunderland, também caiu nesse período, em 2016/17.
Isso é o reflexo de uma tendência de muitos anos. Na temporada inaugural da Premier Legue, em 1992/93, 10 dos 22 times eram do norte – os “quatro grandes”, mais Blackburn, Leeds, Middlesbrough, Oldham e os dois times de Sheffield. Na atual temporada são apenas sete – três, se excluirmos Liverpool e Manchester. Pelo menos um time ao norte de Manchester terminou no Top 5 da Premier League na primeira década, entre 1993 e 2004. Nos últimos (quase) vinte anos, porém, isso aconteceu apenas uma vez – Newcastle, quinto em 2011/12. Mas nas últimas cinco temporadas, a melhor campanha do Newcastle foi o décimo lugar. A tendência não é exclusiva aos times da elite, inclusive. Atualmente, a porcentagem de clubes do Norte nas quatro divisões profissionais da Inglaterra é de 36%, a menor em toda a história.
Elitização, gentrificação, metropolização
É fácil apontar o dedo para fatores individuais, como donos ganansiosos, a interminável troca de técnicos e dinheiro mal-investido (tudo visto na série documental sobre o Sunderland, na Netflix). Embora sejam fatores a se considerar, os times do Norte não tem o monopólio da incompetência. Para entender um pouco mais a situação caótica dos times, é preciso olhar para um pouco além de futebol e scouts.
No começo dos anos 1960, a Associação de Jogadores Profissionais teve duas grandes vitórias na Inglaterra. Em 1961, o salário máximo foi abolido; e dois anos depois, o jogador do Newcastle, Goerge Eastham, ganhou na justiça o direito de se transferir a outro clube ao final do contrato – até então, os clubes tinham o direito unilateral de re-contratar o jogador. Essas duas mudanças começaram “o processo econômico de concentração de renda e do sucesso reduzido a poucos clubes”, como analisa o autor Tony Collins, no livro Sport in a Capitalist Society. E, claro, o dinheiro foi um fator determinante para o desempenho dos times dentro de campo.
Isso porque na história do futebol inglês, tradicionalmente um aspecto importante determinava o poderio econômico de um clube: a renda dos jogos em casa.
Com a mudança dessa realidade, e os times do Norte foram os perdedores. Desde a fundação da Premier League, o interesse pela liga explodiu imensamente, principalmente na classe média, nos setores coorporativos e em estrangeiros ricaços. Isso transformou completamente a receita dos clubes em dias de jogo, só que esse bolo não foi repartido de forma igualitária – os benefícios só atraíram torcedores estrangeiros em Londres e regiões culturalmente famosas, com fácil acesso ao transporte de lá, como Liverpool e Manchester.
Times com médias de público inclusive inferior aos clubes do Norte são capazes de gerar mais receita: em 2016, o Sunderland teve a sexta-maior média de público da Premier League, e apenas a décima-terceira maior receita de jogo. Naquele ano, o West Ham teve uma média de público de 9 mil pessoas inferior a do Sunderland, e a receita das partidas em casa foram o dobro. O Sunderland apelou em reduzir o valor do sócio, um ato desesperado de quem depende da economia local numa competição contra super-metrópoles (o Sunderland foi rebaixado).
Simon Chadwick, professor de Business Esportivo da Universidade de Salford, mora em Middlesbrough. Embora o clube tenha subido à Premier League em 2016/17, a desvantagem econômica não evitou o rebaixamento logo de cara. “O senso de comunidade local e de amor pelo time sempre vai existir, mas a tendência é isso se diluir cada vez mais pelo aumento de mobilidade dos jovens para centros maiores. O Boro é só um reflexo de como a cidade é administrada, sempre correndo atrás do mundo, mas é muito difícil correr rápido o suficiente”.
Se existe uma co-relação entre o que um time ganha, e aquilo que ele produz em campo – algo que o autor de Soccernomics acredita estar na casa dos 90% -- então os baixos resultados dos clubes do Norte são um efeito colateral do declínio da região. E o desempenho inferior tem uma tendência de ser ainda pior quando um governo conservador está no poder na Inglaterra, pela rotineira agenda de reduzir drasticamente os empregos no setor público, o que afeta o Norte de maneira desproporcional, onde a porcentagem de servidores públicos é muito maior.
Outro grande período de recessão para os clubes do Norte foram os anos 80; na temporada 1980/81, a primeira após Margareth Thatcher assumir o cargo de primeira-ministra, a proporção de clubes nortistas nas duas primeiras divisões do futebol inglês caiu em 27%, um recorde histórico. Assim como agora, foi um período ótimo para os clubes medianos de Londres e região; Brighton, Oxford United e Luton na época; e Crystal Palace, Brentford e Bournemouth hoje em dia.
Na tentativa de atrair os melhores jogadores, os times do Norte enfrentam um problema duplo. Eles faturam menos em relação aos outros clubes, então é difícil oferecer mais grana. E alguns jogadores simplesmente não são atraídos pela ideia de viver numa cidade indutrial do Norte inglês. Então, para compensar a ideia de morar numa cidade feia e tosca, eles pedem mais grana.
“Sunderland é uma cidade desoladora. Assim como Newcastle”, escreveu Roy Keane, que treinou o Sunderland, em sua autobiografia. “Todo mudo quer uma compensação pelas noites frias e de escuridão”. E às vezes nem um salário melhor é suficiente para convencer os jogadores. “Toda vez que um jogador mais famoso está prestes a assinar com o Sunderland surge o papo da esposa dele reclamar da falta de vida noturna e de shopppings”, escreve Paul Dobson, para um zine do Sunderland. “Isso não é um argumento que faça sentido, pela (pouca) distância com Manchester, por exemplo, mas é uma mentira contada mil vezes que acaba virando verdade”.
O mesmo pode ser dito a respeito de donos que investem dinheiros nesses clubes. Não tem a ver apenas com resultados ou dinheiro. É muito mais fácil para um milionário estrangeiro entrar num jatinho e ir assistir o seu clube em Watford ou no West Ham do que, digamos, em Burnley ou Blackburn. A família Rao, que comprou o Blackburn Rovers em 2010, certa vez não visitou o clube durante três anos inteiros; a família de milionários indianos parou de investir dinheiro e o clube chegou a cair para a terceira divisão (antes de voltar à segunda, onde está atualmente).
Histórias como a do Sunderland, Blackburn, Leeds, e o Blackpool, que até outro dia boicotava os jogos em casa em protesto contra a família Oyston, tendem a se repetir de maneira perpétua. Os tempos de gestão por um empresário local já eram – como o Blackburn Rovers, que ganhou a Premier League em 1994/95 com o dinheiro de um empreendedor local da metalurgia. A briga agora é contra os bilhões que vem dos Estados Unidos, China, Rússia e o soft-power geopolítico turbinado de petro-dólares do Oriente Médio. Não é só que os clubes do Norte ssejam pior administrados do que os co-irmãos do Sul. É que existe muito menos espaço para os erros.
Um caminho sem volta?
Por outro lado, talvez isso seja um pouco drástico. Nas duas primeiras divisões, o Norte ainda tem mais representantes do que poderia, relativo a população – 36% dos clubes, comparado a apenas 27% da população do norte inglês e País de Gales, segundo a Soccernomics. Impressiona ainda mais a média de público dos times, que parece ser imune aos terríveis resultados nos últimos anos.
Gary Neville, que recentemente fez parte do consórcio de ex-jogadores do Manchester United que comprou o Salford City, há menos de 10km da metrópole, acredita que a história não garante mais nada. “O que é mais importante aos jogadores hoje não é a cultura ou a história de um clube, mas o local e a distância onde a família deles gostaria de morar”, disse.
O futuro dos clubes do Norte não é muito diferente da própria região, e de outros esportes. O time de críquete de Durham, apesar do sucesso em campo, anos atrás precisou de ajuda da Federação para continuar vivo. O resultado foi mais ou menos como no futebol: a fraqueza econômica simplesmente impede clubes da região de competir com salários dos times do sul. O colapso econômico e a hipervalorização moderna de metrópoles causou o mesmo problema nos times da antiga Alemanha Oriental, que até o ano passado só tinha o Leipzig na Bundesliga – um time que, como sabemos, tem um investimento estrangeiro.
Nada disso, claro, é novidade. O futebol, e sobretudo a Premier League, é um grande negócio, e ninguém faz questão de esconder. A tendência é que o sucesso em campo aconteça apenas onde está o dinheiro – seja dos times, das regiões, ou os dois. É improvável que vá existir um revival do timaço do Leeds Utd. nos anos 70, muito menos o tricampeonato do Huddersfield nos anos 20. Os seis títulos na liga do Sunderland e os quatro do rival Newcastle, ou a redenção do Blackburn Rovers na Premier League também não parece realista.
A menos que aconteça uma revolação econômica como a de 1961, que aboliu o salário máximo no futebol. Só que, desta vez, ao contrário.
Por Tim Wigmore, na The Blizzard número 24 – traduzido com várias adaptações.
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PRORROGAÇÃO – OU Coisas que valem mencionar
Mas e o Leicester não seria do norte inglês?
Alguns analistas mais generosos diriam que sim, mas, tecnicamente, ele fica na região das Midlands, o famoso centrão da Inglaterra. O mesmo vale para os dois clubes de Birmingham e o Wolverhampton, na região chamada Black Country, pelas inúmeras fábricas metalúrgicas e minas de carvão em toda região.
Amamos o Rovers, odiamos os Rao...
Faz alguns já que a torcida do Blackburn Rovers protesta contra os seus donos da VH Group, encabeçado pelo bilionário indiano Banda Vasudev Rao, considerado o pai da indústria aviária da Índia. O grupo comprou o Blackburn quando o clube ainda estava na Premier League e chegou a cair pra terceirona.
Damned United...
O Leeds United ficou 16 anos fora da Premier League e passou pela mão de todo o tipo de aproveitador. Em 2004, foi comprado por Ken Bates, que já tinha sido o dono do Chelsea, antes dele vender pro Abramovich (a vida dele é comprar e vender time de futebol). Em 2012, ele repassou o clube ao fundo de investimentos do Bahrein, que então repassou ao italiano Massimo Cellino, dono do Cagliari (ele vendeu o Cagliari, e depois o Leeds, e hoje é dono do Brescia). O dono atual do Leeds é o empresário italiano Andrea Radrizzani, dono da Eleven Sports, um serviço de streaming de esportes – que, por exemplo, tem os direitos da Champions League em Portugal.
Inacreditável seu trabalho, qualidade alta demais.