Trinta anos do título mais melancólico da história
Em junho de 1991, o Hansa Rostok se sagrava o campeão da Alemanha Oriental, em um campeonato sem nome, de país que já nem existia mais oficialmente.
A temporada 1989/90 da Oberliga começou antes da queda do Muro de Berlim, e terminou já com a Alemanha unificada. Ainda assim, alguém teve a brilhante ideia de jogar um último campeonato, de um país que já nem existia mais, em 1990/91. Tecnicamente, a liga serviu apenas para classificar os times da Alemanha Oriental para a Bundesliga - dois na primeira divisão, seis na segunda, e o resto na terceira. A média de público, que desde os anos 80 já não passava das 10 mil pessoas, foi de pouco mais de 4 mil. Podemos chamar de a liga mais melancólica do mundo.
Em maio de 1991, um clube minúsculo de uma cidade portuária e que nunca tinha ganhado se quer um título, o Hansa Rostok, foi o campeão da liga, com três rodadas de antecedência (o Dínamo Dresden foi o vice). O clube ainda ganharia o último e derradeiro título da Alemanha Oriental, na final da Copa da RDA (ou DDR, em alemão), contra o Stahl Eisenhüttenstad, com míseras 4.800 pessoas em Berlim, em 2 de junho de 1991. O comunismo estava morto e o futebol morreu junto.
A feira livre de jogadores baratos
Em 9 de novembro de 1989, caiu o Muro de Berlim e a República Democrática Alemã (RDA) abriu suas fronteiras com a Alemanha Ocidental. Menos de um ano depois, em outubro de 1990, a Alemanha reunificou-se após quatro décadas. Isso mudou a vida de milhões de alemães, mas sobretudo a comunidade de futebol do leste.
Os estádios de futebol na RDA na década de 1980 refletiam com precisão a decadência do país. O regime de Erich Honecker não tinha recursos para modernizar as instalações esportivas, com arquibancadas de madeira em ruínas, cercas enferrujadas, e até mesmo os holofotes tornaram-se um artigo de luxo – os jogos à noite foram praticamente extintos. A primeira divisão da RDA, a Oberliga, não atraía o interesse de ninguém, e poucos dias depois da abertura da fronteira com a Alemanha Ocidental, a seleção nacional da RDA disputou seu último jogo das Eliminatórias para a Copa do Mundo - um derrota de 3 a 0 para Áustria. Um mês depois, o maior destaque da seleção, Andreas Thom, deixou a Alemanha Oriental e rumou para o oeste.
Os alemães ocidentais invadiram o futebol do leste como garimpeiros à procura de diamante - com preço de banana. Reiner Calmund, diretor esportivo do Bayer Leverkusen, foi o primeiro a desbravar o novo mercado, com uma sacola de dinheiro e muitos brinquedos, o empresário viajou para a tranquila cidade de Rüdersdorf, onde morava Andreas Thom. O jogador de 24 anos era considerado o maior talento da RDA e chegou às manchetes como o maior artilheiro do BFC Dínamo, que conquistou o campeonato nacional por dez anos consecutivos – o clube da Stasi.
Calmund convenceu os filhos de Thom com os brinquedos, e o jogador com uma transferência recorde de 3,6 milhões de marcos. Em fevereiro de 1990, antes mesmo da unificação oficial, Thom assinou com o Leverkusen. “Esses caras estavam desesperados para ir para o Ocidente. Lá estava o dinheiro, é o que eles estavam assistindo na TV”, Calmund declarou ao programa de televisão Sportstudio. “Ficou claro que os clubes tinham que vender os jogadores. Eles preferiam a Itália por mais dinheiro, mas todos os jogadores queriam jogar na Bundesliga.”
A transferência de Thom deu início a uma tendência irreversível. Matthias Sammer, Ulf Kirsten, Thomas Doll e outros seguiram Thom já no verão de 1990, pouco antes da reunificação. Da seleção da Alemanha Oriental que jogou aquele último jogo contra a Áustria, só três não foram para o oeste. Até times da segunda divisão estavam contratando as estrelas da extinta Oberliga. Em um país em ruínas como a Alemanha Oriental, nunca houve escassez de talentos de primeira classe.
Os clubes do leste bem que tentaram se adaptar às práticas do capitalismo. Heiko Scholz foi o primeiro jogador a ser transferido por mais de 1 milhão de marcos alemães na RDA, ao trocar o Lok Leipzig pelo Dresde, em 1990. Dois anos depois, porém, Calmund também convenceu Scholz a ir para Leverkusen.
O último campeonato e o hooliganismo
Antes da unificação entre Oberliga e a Bundesliga, o campeonato jogado em 1990/91, batizado de Liga do Nordeste, não foi exatamente uma grande propaganda para os times do leste. O campeonato todo teve um clima de funeral, misturado com jogadores desesperados para mostrar que poderiam jogar no Ocidente.
Os clubes do leste simplesmente não tinham como vencer a queda de braço. Os direitos de TV foram congelados e a região como um todo sofreu um grande baque econômico, com empresas fechando e enorme êxodo da população. A média de 4.807 torcedores por jogo foi a menor na história das duas Alemanhas.
A Federação Alemã providenciou um plano de resgate de 2,2 milhões de marcos, o que no fim só fez com que clubes gastassem o que não podiam. Além dos problemas financeiros, a Oberliga já enfrentava uma crescente onda de violência, especialmente em partidas envolvendo o BFC Dínamo, rebatizado de FC Berlim – nessa altura, o Ministro da Segurança Nacional (Stasi), Erich Mielke, já estava preso.
Milke nunca foi o único da Stasi envolvido no futebol da Alemanha Oriental. Anos mais tarde, foi revelado que vários jogadores trabalhavam como informantes do Estado, inclusive o atacante do Dresden, Torsten Gütschow, artilheiro da última temporada da Oberliga - a Stasi libertou ele da cadeia na Suécia, por dirigir alcoolizado, em troca dos serviços como informante.
Os torcedores do BFC Dínamo foram os primeiros a capitalizar com a escória do neonazismo, e em novembro de 1990, a violência atingiu um clímax trágico contra o Chemie Leizig (então Saschen). Três pessoas ficaram gravemente feridas e Mike Polley, de 18 anos, morreu nos portões do Alfred-Kunze-Sportpark.
A partida cerimonial de reunificação entre a Alemanha Oriental e Ocidental, planejada para o final daquele mês, teve de ser cancelada por questões de segurança. Em março de 1991, o Dínamo de Dresden foi banido da Copa da Europa após violentos tumultos na partida contra o Estrela Vermelha de Belgrado, um anos antes. Foi uma época bem sombria para o futebol na extinta Alemanha Oriental.
O capitalismo te dá asas…e depois corta
Hansa Rostock foi o único clube que conseguiu se estabelecer na Bundesliga durante a década de 1990. Após anos de insignificância antes da queda do Muro de Berlim, o sucesso inicial do Rostock foi o resultado de uma parceria com o Werder Bremem. Na primavera de 1990, os dois clubes chegaram a um acordo de cooperação, em que o Bremem pagou pela contratação do técnico Uwe Reinders, que exigiu um bônus de 200 mil marcos por vencer o campeonato, e outros 200 mil por vencer a copa nacional – o que parecia algo completamente fora da realidade.
Assim que Reinders chegou à Rostock, ele percebeu as diferenças culturais. “Quando ele veio ao campo de treinamento pela primeira vez, os jogadores estavam todos em fila”, lembrou ele mais tarde. Reinders perguntou ao seu assistente o que estava acontecendo, porque ele nunca tinha visto nada parecido. “Eles esperaram que eu os cumprimentasse com ‘Sport Frei ’”. [Em português, “Esporte Livre”, era uma saudação típica de esportistas na Alemanha Oriental e hoje adotada pelo movimento neo-nazi]. “Acho que eles estavam esperando um general”, disse Reinders.
Com a grana do oeste, o Hansa se tornou a única história de sucesso nos últimos dias do futebol da Alemanha Oriental, enquanto outros clubes afundavam: o Dínamo Dresden jogou pela primeira vez na Bundesliga como o Hansa, mas experimentou um colapso financeiro, e forçou a liga a retirar sua licença e rebaixá-los diretamente para a terceira divisão. O VfB Leipzig (ex-Lokomotive), jogou uma temporada na Bundesliga em 1993/94, até hoje um dos piores desempenhos.
O Rostok foi o único clube do leste a jogar consistentemente na Bundesliga até o seu rebaixamento, em 2005. Com o inevitável baque financeiro da queda, desde então o clube virou um iô-iô entre a segunda e terceira divisões - jogando a 3. Liga nas últimas oito temporadas sem conseguir o acesso.
Ex-potências da Alemanha Oriental, como FSV Zwickau, FC Magdeburg e Chemie Leipzig, também foram à falência ao longo dos anos, às vezes por causa de um planejamento financeiro desastroso para competir com os clubes muito mais ricos. Como resultado, as escolinhas que produziram muitos talentos se deterioraram, e jovens jogadores com potencial rapidamente deixaram seus clubes de origem e se mudavam para o oeste. Hoje em dia, a quarta divisão da Alemanha é quase uma espécie de substituta da Oberliga, tanto são os clubes do leste.
Antes do RB Leipzig, financiado pela empresa de bebidas energéticas, o futebol da Alemanha Oriental viveu anos de irrelevância na Bundesliga – com o Hansa Rostock e o Energie Cottbus aparecendo na primeira divisão aqui e ali, mas nem perto do nível para competir pelos primeiros lugares.
Trinta anos atrás, Hansa Rostok e Dínamo Dresden, “subiam” junto à Bundesliga, campeão e vice do leste, agora numa Alemanha unificada. Hoje, os dois acabam de se dar por satisfeitos de subirem juntos de volta à 2. Bundesliga, a segunda divisão alemã. O futebol da região tem uma história absurdamente rica, mas três décadas após o fim do socialismo, o presente deles é pobre, pobre.
Por Leandro Vignoli, um original Corneta Press – e pesquisa via These Football Times
Gostou desse texto? Assine a newsletter abaixo e receba na sua caixa de e-mail!
PRORROGAÇÃO – OU Coisas que valem mencionar.
Onde a Stasi vai mal, mais um time no nacional...
Originalmente, o Hansa Rostock jogava em Lauter, na divisa com a Tchecoslováquia, sob o nome Empor Lauter. Descontente com os muitos times presentes na região, em 1954 o General Milke ordenou que o clube se mudasse, no meio do campeonato, para Rostok, uma cidade portuária meio sem qualquer atrativo às margens do Mar Báltico e porta de contato com o resto da Europa.
O derby do medo...
Com a unificação, Rostok virou só mais um entre os tantos portos na Alemanha – um bem afastado, inclusive. O desemprego foi às alturas, fábricas fecharam, e a torcida do Hansa Rostok se tornou um dos maiores antros de hooligans de extrema-direita da Alemanha, daí a grande rivalidade com o St. Pauli, de Hamburgo, outra cidade portuária, e sua torcida antifa. Fora dos grandes centros, provavelmente seja o dérbi mais violento e de conotações políticas da Europa.
Capitalismo e as revistas de mulher pelada...
A penúltima Copa da RDA, realizada já após a queda do Muro do Berlim, em junho de 1990, viu o Dínamo Dresden de Mathias Sammer vencer o seu último título oficial. Mas destaque mesmo é pro vice Dínamo Schwerin, que jogou a final com patrocínio da Neue Revue, uma revista de mulher pelada, o que era proibido na Alemanha Oriental!
À sombra de informantes...
Caso você curta a história dos times da Alemanha Oriental, fica a dica do livro Turning Season: DDR-Oberliga Revisited, em que o autor visita cada um dos times que jogaram aquela última temporada ainda sob o nome Oberliga, antes da unificação. Infelizmente, o livro só tem uma edição em inglês, pela Pitch Publishing.