O jogo das três horas
Cinquenta anos atrás, dois times nos Estados Unidos jogaram seis prorrogações. Essa é a história da maratona que durou quase duas partidas inteiras de futebol
Quando o árbitro apitou o início do jogo às 20h, no antigo Aquinas Stadium em Rochester, no estado de Nova York, ninguém entre os 8.302 torcedores sabia que estaria assistindo a 176 minutos de futebol. O jogo entre o Rochester Lancers e o Dallas Tornado era a ida da semi-final da North American Soccer League (NASL), a liga dos Estados Unidos que precedeu a MLS. O gol da vitória do Rochester, que encerrou a partida, foi marcado por Carlos Metidieri somente às 23h59 do dia 1º de setembro de 1971, uma maratona que completou 50 anos.
“Quando ele marcou o gol, não foi um alívio só para nós”, disse Edner Breton, atacante do Rochester. “Foi uma alegria ganhar um jogo como este, mas para o time deles também, mesmo com a derrota, todos estavam felizes por ter acabado.” O treinador do Rochester, Sal deRosa, classificou como o “jogo mais inacreditável que já viu”.
Em números absolutos, foram 2 horas e 56 minutos de futebol, quatro minutos para completar dois jogos completos. Foram 90 minutos do tempo normal, e seis prorrogações de 15 minutos, conforme o regulamento do gol de ouro da NASL na época (algo similiar às regras do hóquei).
Quase todo tipo de coisa estapafúrdia foi testado naquela fase inaugural do futebol dos EUA. Cada vitória, por exemplo, eram seis pontos, e cada gol marcado valia um ponto extra (com o máximo de 3 pontos); o empate dava três pontos. Alguns amistosos, como contra times como o Hertha Berlin, também contavam na tabela oficial.
Os Lancers entraram no fatídico jogo das três horas como os atuais campeões da NASL, com nomes como o talentoso atacante Carlos Metidieri (foto), o único jogador na história da NASL a ser artilheiro e o “MVP” em duas temporadas seguidas - um feito e tanto numa liga que no futuro teria um tal Edson Arantes.
Todavia, foi o Dallas Tornado que ganhou a vaga para a final, e depois o título, no primeiro ano com o New York Cosmos na liga. Entre as “estrelas” do time estavam John Best, de modestíssima passagem pelo Liverpool, o lateral brasileiro Oreco, campeão do mundo em 1958 (e parte do histórico Rolo Compressor do Inter), e o inglês Mike Renshaw (foto abaixo), que chegou a jogar quatro jogos pela seleção dos EUA nos 70, mesmo sem ter a cidadania do país e com o visto de trabalho expirado - em resumo, o que o pessoal hoje gosta de chamar de “imigrante ilegal”.
Prorrogações infinitas e gol de ouro
Antes da temporada de 1971, a pedido do co-proprietário do próprio Rochester Lancers, Charlie Schiano, a NASL eliminou os pênaltis como modo de decidir os mata-matas. Talvez tenha sido carma. A partida entre Rochester e Dallas terminou 1 a 1, e a primeira prorrogação começou por volta das 22h, antes dos dois times jogarem eternamente pela vitória. “Chegou um momento em que não importava mais”, disse Breton. “Todos só queriam um gol, que alguém acabasse com a nossa tortura”.
A coisa foi tão sem sentido que por volta dos 165 minutos de jogo o zagueiro Gabbo Gavric do Dallas teve cãibras, e como as duas equipes já tinham usado as duas substituições (duas!), Gavric permaneceu ao redor do círculo central, chutando a bola sempre que ela estava perto dele. “Foi patético. Cada vez que a bola chegava perto dele, dava para ouvir uma celebração dos fãs no estádio”, disse Breton.
O autor do gol, Metidieri, precisou usar dois pares de chuteiras. “Uma meio que abriu”, disse ele. “O estado do gramado não era muito bom e eu estava com chuteiras com travas de borracha. Resolvi trocar para uma chuteira de futebol society, e acho que ajudou. Eu consegui marcar o gol depois disso.” Diz outra lenda que muitos torcedores deixaram o estádio, que ficava em uma área residencial em Rochester, e voltaram mais tarde ao descobrir que o jogo ainda estava acontecendo.
Metidieri contou uma história a respeito do árbitro do jogo.
“Ele chegou pra um zagueiro nosso e disse ‘avisa o teu atacante para se atirar na área que eu vou dar o pênalti, vamos terminar este jogo ’. Ele tinha que pegar um vôo cedo da manhã e naquela época os caras ganhavam de 50 a 75 dólares para apitar um jogo. Mas a zagueirada do Dallas não contribuiu e não cheguei perto da área nenhuma vez. "
Os dois treinadores pediram várias vezes ao comissário da NASL, Phil Woosnam, que parasse o jogo, que fosse decidisse por pênaltis ou mesmo pelo número de escanteios. Após a quinta prorrogação, Woosnam disse que a próxima seria a última.
Mas ele nunca teve que tomar uma decisão.
Metidieri, conhecido como El Topolino (italiano para "Ratinho") com seus 1,60, meteu um chute de fora da área no canto do goleiro. Vitória dos donos da casa. “A próxima coisa que deu para ver foi uma pilha de jogadores em cima dele”, disse Breton. “Ninguém sentiu dor naquele momento, era pura exaustão misturada com êxtase. Foi um dos sentimentos mais loucos que já experimentei num campo. Eu joguei muitos jogos desde então, mas nunca vivi algo parecido”.
A torcida invadiu o campo, colocando os jogadores nos ombros. Com todos os restaurantes e bares da cidade já fechados à meia-noite, o co-proprietário do Rochester Lancers, Pat Dinolfo, levou a equipe a um refeitório da empresa Kodak. Metidieri chegou em casa às 3 da manhã. Aos repórteres, ele declarou: “Acho que isso vai abalar eles totalmente. Não devemos ter muitos problemas no jogo em Dallas. ”
A partida de volta e a saga das prorrogações
O atacante, porém, estava completamente enganado.
O Tornado se reagrupou e venceu por 3 a 1 ainda o tempo normal no estádio Franklin Field, em Dallas, três dias depois, forçando um terceiro jogo desempate em Rochester. E assim como na primeira partida, o confronto foi outra vez para a prorrogação, que desta vez durou 148 minutos. Mas diferente da maratona da primeira partida, Bobby Moffat (foto), o famoso zagueirão da camisa 14, marcou o gol da vitória pro Dallas, que foi para a final da NASL. Nos jogos da final, o Dallas Tornado perdeu a primeira partida contra o Atlanta em “apenas” três prorrogações de 15 minutos – 124 minutos - mas venceria a volta e o desempate para ficar com o título.
Após a temporada de 1971, as maratonas na NASL foram suspensas, mas não no futebol dos Estados Unidos. Durante a final da ASL em 1975 (espécie de “segunda divisão” da NASL na época), o haitiano Edner Breton participou de outro jogo de 157 minutos entre o New York Apollos e o Boston Astros. Não existe um registro oficial sobre o jogo, apenas que o troféu foi dividido entre os clubes.
Mas Breton, que jogou, relembra alguns fatos interessantes:
- a final teve um público de pouco mais de 1.000 torcedores, incluindo o comissário da liga, Bob Cousy, o lendário 6x campeão da NBA com o Boston Celtics.
- o jogo foi interrompido às 12h30, após o toque de recolher da cidade.
“Não é preciso ser um especialista em futebol para ver que os dois times merecem o título, e eu não me importo qual é o precedente para algo assim,” afirmou Cousy. Um jogo extra não poderia ser realizado porque todos os contratos dos jogadores do New York Apollo haviam expirado exatamente naquela noite.
Por Leandro Vignoli - baseado em texto de Michael Lewis para o The Guardian (set 2015)
Gostou do texto? Assine a newsletter e receba direto no e-mail!
PRORROGAÇÃO (literalmente!) Ou – Coisas que valem mencionar
A maratona do Dallas Tornado…
Entre as prorrogações da semifinal contra o Rochester e a final contra o Atlanta, o time jogou 537 minutos de futebol em 13 dias, o equivalente a quase seis jogos. Foi o único título do clube, que encerrou as atividades em 1981.
Antes e Depois de Pelé, só que não...
A estreia de Pelé na NASL em 1975 aconteceu justo contra o Dallas Tornado, o que não impediu certas coisa esdrúxulas na liga. O jogo no Downing Stadium, por exemplo, teve o gramado famosamente pintado de verde para ficar mais bonito na televisão (foto abaixo). Apesar disso, o Cosmos de Pelé seria campeão apenas em 1977 (já com Beckenbauer, Carlos Alberto Torres e Chinaglia no time), no seu último jogo oficial. Mais de 77 mil pessoas viram a semifinal contra o Fort Lauderdale Strikers, um recorde no futebol dos EUA na época, mas sem Pelé a NASL foi gradativamente morrendo em média de público até a sua extinção, em 1984.
Outras regras estapafúrfias...
Em 1973, a NASL instituiu uma “linha azul” no gramado (do hóquei!), e o impedimento valia apenas se o jogador estivesse à frente dessa linha azul. Em 1974, eliminou os empates, e todos os jogos decididos nos pênaltis (como no hóquei!), algo que durou até o ano 2000. Inclusive, nos anos 90 (já como MLS), surgiram as históricas cobranças de pênaltis com a bola andando (como no...hóquei).
O sonho dos EUA é transformar o futebol num jogo com taco e disco...
O goleiro do vídeo é o Tony Meola, que pegou muito na Copa de 94, fez o Bebeto e Romário suarem a camisa pra conseguirem balançar a rede.