Conference League e os clubes exilados
A nova terceira competição criada pela UEFA, a Conference League é aquele suco de times alternativos, histórias peculiares e clubes longe da cidade de origem
Com a introdução da nova competição da UEFA, três países terão pela primeira vez um representante na fase de grupos de um torneio europeu (Armênia, Estônia e Gibraltar), e oito clubes fazem a sua estreia. Dos 32 times na fase de grupos da Conference League, cinco são do bloco da ex-União Soviética, e todos tem ao menos uma história vinculada à guerras, disputas de territórios e exílios.
Zorya Luhansk (Ucrânia)
Nem tão novato assim na UEFA, o Zorya jogou a Liga Europa de 2016/17 em um grupo com Manchester United, Feyenoord e Fenerbahçe, sem nenhuma vitória. Caso similar ao do Shaktar Donestk, o clube mandou todas as suas partidas em Odessa, mais de 900 km de Luhansk, devido à Guerra Civil no Leste da Ucrânia, um conflito armado entre as forças separatistas pró-Rússia em Donetsk e Luhansk e o governo ucraniano - os separatistas são amplamente liderados por cidadãos russos.
Mais de um milhão de ucranianos já deixaram a região por conta do conflito e durante a guerra, o estádio do Zorya foi danificado por um ataque de mosteiro. Na Conference League, onde caiu no grupo da Roma, o Zorya vai jogar um pouco mais perto de casa, em Zaporizhzhia, “apenas” 400 km oeste da cidade natal.
De fato, por estar na fronteira, a própria torcida do Zorya tem certa inflûência da cultura russa, mas não é só a distância o problema em assistir aos jogos do time “em casa”. Sair de Luhansk hoje é necessário passar pela Zona de Operação Antiterrorista, nome que o governo ucraniano deu ao território. A cidade fica longe demais das capitais (como diria Humberto Gessinger) e o resto das grandes cidades, e sempre foi um centro de metalurgia, um lugar de carvão, fumaça e céu preto.
Na situação atual, Luhansk e Donetsk são regiões “independentes” controladas por milícias, mas é difícil saber ao certo a porcentagem de torcedores do Zorya (ou do Shaktar) que de fato são pró-Rússia nesse imbróglio étnico. O único fato é que a possibilidade dos dois times jogarem em casa ainda está muito longe.
Qarabag (Azerbaijão)
O Qarabag já fez história como o primeiro (e único) clube do Azerbaijão na fase de grupo da Liga dos Campeões, em 2017/18 (embora com nenhuma vitória no grupo de Chelsea, Atlético de Madrid e Roma). O clube, que joga na capital Baku, chegou a ser heptacampeão nacional entre 2014 e 2020, bancado por uma estatal de bilionários iranianos, que seriam investigados por lobby, contas em paraíso fiscal e troca de favores com o presidente Ilham Aliyev, que governa o país sob um regime desde 2003. Sabe a final da Liga Europa de 2019 em Baku? Sabe os Grand Prix de Fórmula 1 realizados em Baku? Pois então. Não tem almoço grátis.
O clube do povo em Baku é o Neftçi, o time do Azerbaijão durante a era soviética. É algo facilmente compreensível, pois o Qarabag não é exatamente de Baku. Ele joga na capital desde 1993, mas sua origem está a 150 km, em Aghdam, que foi ocupada por milícias da Armênia na guerra Nagorno-Karabakh – que fica dentro do Azerbaijão, mas historicamente foi povoada por uma maioria de armênios. Na Conference, o Qarabag está no grupo do Omonia, o patriótico clube do Chipre.
A guerra entre Azerbaijão e Armênia, que durou até o ano passado, teve seu ápice entre 1988 e 1994, com mais de 35 mil mortos (um dos motivos do armênio Henrikh Mkhitaryan não ter jogado pelo Arsenal aquela final da Liga Europa de 2019 contra o Chelsea, no Azerbaijão). Aghdam, a cidade original do Qarabag, é uma cidade-fantasma. É uma área inabitada, só tem destruição, escombros e mato. O estádio do Qarabag, por exemplo já não existe mais.
Em novembro de 2020, como parte do acordo que encerrou a guerra, a cidade e seus arredores foram devolvidos ao controle do Azerbaijão. A previsão é de que demore entre dois e cinco anos para ser habitada, e cerca de outros 15 anos para serem removidas as últimas minas terrestres do local. Talvez seja o início de uma volta do Qarabag para a sua casa. Isso se o presidente do país deixar.
Alashkert (Armênia)
Se o Qarabag não joga em casa por uma invasão armênia, na Armênia eles têm as suas próprias invasões para se preocupar, o que indiretamente é o caso do Alashkert. O clube foi fundado em Martuni, por descendentes do genocídio armênio na Turquia. O povoado de 12 mil habitantes é quase todo de refugiados da limpeza étnica feita na região de...Alashkert (ou Eleşkirt, para os turcos).
Embora não seja necessariamente exilado, o clube carrega conotações políticias, com o nome em homenagem a uma cidade turca de (ex) maioria armênia. Desde 2011, porém, o clube passou a jogar na capital Yerevan (e não mais Martuni), após ser re-fundado por um novo dono, Bagrat Navoyan, que além dos pais serem de Alashkert, é dono da maior agência de turismo no país. Ele não apenas manteve o nome, como renomeou o estádio da capital para Alashkert Stadium.
Desde então o clube venceu quatro campeonatos nacionais. É a primeira vez na história que um clube da Armênia joga a fase de grupos de um torneio da UEFA.
Ah, e por falar na guerra Nagorno-Karabakh entre Azerbaijão e Armênia, que terminou relatamos logo acima, um dos soldados mortos nos conflitos que ocorreram entre 2019 e 2020 era jogador do time B do Alashkert.
Kairat Almaty (Cazaquistão)
O Kairat era o grande representante do Cazaquistão no período soviético, o “clube da nação”, e que joga num histórico estádio para 25 mil pessoas em Almaty. O time do Vagner Love joga a fase de grupos pela primeira vez, e na sua própria casa.
Então por que ele está aqui?
É mais pela relação sócio-econômica-fubebolística do país. Almaty, com 2 milhões de habitantes no extremo sul do país (quase na fronteira com a China), era a capital do Cazaquistão até 1997, quando o presidente Nursultan Nazarbayev decidiu mudar a sede administrativa para a mais central Akmola, mais de 1000 km de Almaty. A cidade trocou o nome para Astana (que quer dizer capital, em cazaque).
Astana é uma cidade projetada, uma das mais modernas da Europa, e o FC Astana, fundado em 2009, passou a ser o carro-chefe de Nursultan. O dono do clube é uma estatal cazaque que controla, entre outros serviços, a rede ferroviária e as refinarias de gás e petróleo, e a Air Astana. Entre 2014 e 2019 o FC Astana foi hexacampeão nacional, jogou a Liga dos Campeões (num grupo com Benfica e Atlético de Madrid) e passou da fase de grupos da Liga Europa, em 2018.
Somente em 2020 o Kairat Almaty conseguiu barrar o domínio do Astana, no que hoje é conhecido como o Clássico das Capitais. Por uma coincidência, foi logo após a saída de Nursultan Nazarbayev da presidência do Cazaquistão, onde governou desde a dissolução da USRR, em 1990 até 2019 – ele “renunciou”, mas segue sendo o Chefe do Conselho de Segurança. Logo após a renúncia fake, aliás, o senato votou de forma unânime para que a capital Astana mudasse o nome para… Nur-sultan. O nome do aeroporto em Nur-sultan, aliás, já se chama Nursultan Nazarbayev, e é provável que seja questão de tempo que o rival do Kairat seja o FC Nursultan.
Na Conference, o Kairat está no grupo do Qarabag, que como expliquei é o clube-fantoche de outro presidente, só que do Azerbaijão.
Flora (Estônia)
É a primeira vez na história que um clube da Estônia joga a fase de grupos de um torneio da UEFA. O clube da capital Tallin, que já conta com 13 títulos nacionais, foi fundado apenas em 1990 quando da dissolução da União Sovética e, tecnicamente, não é um clube exilado – roubei no jogo, foi mal aí.
Todavia, dá pra dizer que Tallin, na costa do Mar Báltico a duas horas de balsa de Helsinque, capital da Finlândia, historicamente viveu em exílio. Durante quase mil anos a cidade esteve sob um domínio estrangeiro. Segundo informações wikipídicas, esteve sob a Dinamarca (1238-1332), a Ordem Teutônica - uma pré-Alemanha (1347-1561), a Suécia (1661-1710), vários impérios da Rússia (1721-1917) até proclamar a República da Estônia em 1918. Mas aí veio a Segunda Guerra Mundial e foi ocupada pelos Nazistas (1941-1944) e depois União Soviética, até 1990.
Na Conference, o Flora está no grupo de Partizan Belgrado e Anorthosis Famagusta (que há décadas não joga em Famagusta por conta da ocupação no Chipre).
Por Leandro Vignoli, um original Corneta Press
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PRORROGAÇÃO – Ou Coisas que valem mencionar
O campeão soviético...
O Zorya Luhansk foi o primeiro time do interior a ser campeão da Liga Soviética em 1972 (até então, as capitais Kiev e Moscou eram soberanos), embora com o nome Voroshivlodgrad, o nome de Luhansk durante a URSS. No mesmo ano o Kairat (Cazaquistão) foi décimo terceiro, o Neftchi Baku (Azerbaijão) o rebaixado, além do campeão do ano seguinte, que era o…
O histórico representante armênio!
Ararat Yerevan ganhou a Liga Soviética em 1973, além de outras duas Copas da URSS nos anos 70, e tem uma estátua em homenagem aos jogadores em frente ao Hrazdan Stadium (foto). Fundado na própria capital nos anos 30, ao contrário do novato Alashkert, o Ararat é um dos clubes mais populares da Armênia, embora nunca tenha conseguido o mesmo sucesso após a independência do país, onde ganhou apenas um título nacional da Armênia, em 1993.
Muito por conta dos 13 títulos do grande rival, o FC Pyunik (Fênix em armeno), fundado apenas em 1992, ironicamente por Khoren Oganesian, o maior artilheiro da história do futebol armeno defendendo as cores do...Aratat Yerevan! Ele inclusive foi camisa 10 da URSS na Copa do Mundo de 1982, onde fez um gol.
Antes do zap zap...
Corneta também é cultura. Tallin, a capital da Estônia, é um grande polo de tecnologia na região. É de lá que surgiram as empresas Transferwise (de transferência de câmbio) e o Skype, que para os jovens lendo isso, é como os mais antigos se comunicavam por vídeo antes da existência do whatsapp.