O clube do povo...cipriota?
A rivalidade entre o Omonia e o APOEL, em Nicósia, tem tudo a ver com futebol como tem a ver com o nacionalismo grego e cipriota na região
Nicósia, a capital do Chipre, é uma cidade dividida. Desde a invasão da ilha pela Turquia há mais de 40 anos, a cidade tem uma literal divisão entre norte e sul, cada lado reivindicando ser a capital do país. Enquanto a República do Chipre tem o reconhecimento internacional, a República Turca do Norte do Chipre existe apenas como um estado paralelo (com fronteira, governo e tudo), os dois lados separados com a assistência da ONU. As tentativas de acabar com a divisão já duram algum tempo, mas a última rodada de negociações foi interrompida no ano passado. E, de certa forma, essa intensa rivalidade futebolística em Nicósia é parte disso.
De um lado está o Apoel, o clube dos gregos de Nicósia, fundado em 1926 por gregos-cripriotas com ideias de que o país seja parte da Grécia. Do outro lado está o Omonoia (que quer dizer harmonia, em grego), fundado em 1948 como uma dissidência do próprio Apoel, após a Guerra Civil na Grécia, que foi um confronto entre o Partido Comunista da Grécia, um dos poucos resistentes aos nazistas durante a Segunda Guerra, e os apoiadores do nacionalismo grego.
As divisões políticas eram tão altas que a Associação de Futebol do Chipre (CFA) recusou a entrada do Omonia, que junto com outros clubes de esquerda, formaram a Federação Cipriota de Futebol Amador. Eventualmente, em 1953, a CFA cedeu e o Omonia disputou a primeira divisão do Chipre e, o mais importante, o primeiros clássico de Nicósia, contra o Apoel, um empate de 0 a 0.
O Omonia rapidamente se tornou o time de maior sucesso e, de longe, o mais popular do Chipre, com a classe trabalhadora como base da torcida, embora nos últimos 20 anos o domínio total do futebol do país seja do Apoel, com 12 títulos, inclusive o hepta da liga conquistado entre 2013 e 2019. Em 2020, quando o Omonia era o líder, a liga foi encerrada sem entregar o título devido à pandemia de Covid-19. Porém, em 2021, após mais de dez anos de jejum, o Omonia voltou a se sagrar o campeão do Chipre, inclusive com uma vitória de 3 a 0 no Clássico Nicósia, após oito anos e 27 partidas.
Esse sucesso em campo não veio sem polêmica, porém, após uma assembleia ter votado pelo Omonia se tornar clube-empresa, vendido a um corretor de hipotecas dos Estados Unidos, Stavros Papastavrou. A maioria dos torcedores do clube, vinculados ao partido socialista AKEL (Partido Progressista do Povo Trabalhador), não reagiram bem. O principal grupo de ultras do clube, o Gate-9, renunciou o seu apoio ao Omonia, e decidiu criar um novo clube, chamado Omonia 1948, jogando na liga amadora. “Para eles, vender o clube a um capitalista foi um pecado sem perdão”, afirma um jorrnalista local, à Associate Press. “O Omonia sempre foi considerado o clube do povo.”
A história político-futebolística do Chipre
Essa tensa atmosfera política está enraizada na ilha durante grande parte do século XX, desde o controle do Império Britânico, que tomou o Chipre dos otomanos em 1878. A polarização político-ideológica na região sempre teve tudo a ver com a rivalidade entre Omonia e Apoel. Logo após a Guerra Civil Grega, entre as forças armadas da Grécia, apoiadas pelo Reino Unido e EUA, contra o Partido Comunista da Grécia (em que a Grécia ganhou), líderes do APOEL enviaram um telegrama à Federação Helênica de Atletismo pela exclusão de atletas comunistas. Os rebeldes do APOEL contrários ao ato acabariam fundando o Omonia.
A própria independência do Chipre, em 1960, também refletiu na rivalidade. Em 1955, um ex-general do exército grego, Georgios Grivas, fundou o EOKA (Organização Nacional dos Combatentes Cipriotas), um grupo nacionalista paramilitar determinado a acabar com o domínio britânico no Chipre — eles não lutavam exatamente pelo Chipre como uma nação independente, apenas pela união com a Grécia. Muitos membros do Apoel se juntaram ao EOKA, incluindo jogadores de futebol. Um atleta do atletismo, Michalis Karaolis, que matou um policial que espionava as ações do grupo, acabou enforcado publicamente em outubro de 1956, uma ação que gerou tumultos em Atenas e irritou ainda mais o EOKA.
Até os dias de hoje a torcida do Apoel é tradicionalmente de extrema-direita vinculada ao nacionalismo da Grécia (para eles, o Chipre é a Grécia). O próprio nome do clube são as iniciais de Atlético Futebol Clube dos Gregos da Nicósia. A camisa azul e amarelo é um escolha à dedo - o azul representa a Grécia e o amarelo o Império Bizantino. Já a torcida do Omonia, à esquerda na política, acredita na soberania do Chipre (e embora o Omonia seja do sul de Nicósia, como o APOEL, o clube abraça também a comunidade turco-cipriota, cerca de 27% da etnia do país). No estádio, é muito comum ver bandeiras do Chipre e do Che Guevara, e as cores verde e branco do uniforme representam esperança e paz — o trevo representa a trindade cristã. Durante um clássico em 2014 a torcida do Omonia ergueu um pano que dizia: “Gregos e Turcos trabalhadores unidos. Gregos e Turcos fascistas enforcados”.
Com a forte participação de membros do Apoel na luta armada pela independência, o Omonia se aproveitou e foi o grande campeão do país no período inicial da liga do Chipre, tendo conquistado 14 títulos entre os anos 70 e 80.
Inclusive, foi na década de 1970 quando as coisas explodiram de vez.
Desde a independência, o Chipre foi governado por um presidente democrático, o Arcebispo Makarios III, que teve de fugir do país em julho de 1974, após o Palácio Presidencial ter sido incendiado pela Guarda Nacional Cipriota que acusou Makarios de ser um comunista. No seu lugar assumou o ditador de extrema-direita Nikos Sampson, uma marionete para os generais da Grécia.
A Turquia, por sua vez, temendo que os turcos-cipriotas fossem perseguidos pelo novo presidente, invadiu o Chipre e capturou parte norte de Nicósia (o que hoje eles chamam de Chipre do Norte). Cerca de 200 mil gregos-cipriotas fugiram do norte da ilha, enquanto cerca de 50 mil turco-cipriotas fizeram o contrário, e deixaram o sul do país. Essa explosão política se espalhou naturalmente para o futebol. Após o golpe, a diretoria do Apoel enviou uma mensagem de parabéns a Nikos Sampson.
Para a torcida do Omonia, os torcedores do Apoel eram traidores e golpistas. Para a torcida do Apoel, o Omonia eram comunistas que adoravam a União Soviética.
Um dos afetados pela divisão foi a estrela do Omonia no título em 1971, Sotiris Kaiafas, forçado a fugir para a África do Sul após a invasão da sua vila no Chipre do Norte. Quando Kaiafas voltou na temporada seguinte appós um ano de exílio, ele marcou 39 gols na liga, o maior artilheiro na Europa na temporada. Ele seria hexa-campeão cipriota (do total de 11 títulos da liga com o clube). Na virada do século, Kaiafas foi eleito o melhor jogador de futebol do Chipre, com 261 gols em 388 jogos, todos ele com a camisa do Omonia.
A história nem-tão-política assim
Ao longo dos anos 90, o Apoel se tornou cada vez mais proeminente, e até 2010 os dois clubes dividiam a hegemonia com 20 títulos cada – antes do heptacampeonato do Apoel na última década deixar os rivais bem para trás na contagem. Os clássicos de Nicósia são bem mais moderados desde a entrada do Chipre na União Europeia em 2004 e o enorme número de estrangeiros nas equipes — 70% dos jogadores da liga são estrangeiros, a maior porcetagem de toda Europa. Vários jogadores de categorias de base no Chipre são deixados no banco apenas para “cumprir a cota”.
O clássico tem raízes históricas na divisão política, mas, em última instância, foi o dinheiro de investidores e jogadores estrangeiros que fez do Apoel uma superpotência local, a ponto de ter jogado as quartas-de-final da Champions, contra o Real Madrid. Já no lado do Omonia, o clube do povo voltou a ser campeão, mas a venda de um clube com uma torcida de caráter totalmente de esquerda marca uma encruzilhada não apenas para a cidade, mas talvez para o próprio futebol cipriota.
Por Leandro Vignoli, um original Corneta Press
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À Sombra de “Gigantes”
O outro time de Nicósia é o tradicional Olympiakos, três vezes campeão cipriota, sendo a última vez em 1971. É uma torcida mais velha que, embora não tenha uma forte presença política, é mais alinhada à Grécia. Todos os três times de Nicósia jogam no mesmo estádio, o GSP Stadium, para 22 mil pessoas.
Os times do Chipre do Norte
A parte do Chipre invadida pela Turquia tem uma liga própria, com times próprios — todos de origem turca. Porém, o Dea Salamis e o Anorthosis (13 vezes campeão cipriota), ambos fundados em Famagusta, uma cidade costeira que fica no Chipre do Norte, desde 1974 têm sede em Larnaca devido ao conflito da região - embora ainda joguem sob o nome Famagusta no campeonato do Chipre. Assim como o Apoel na capital, o Anorthosis tem fortes vinculações com a Grécia.
O paraíso dos brasileiros
Nove dos 14 times do Chipre tem um brasileiro atualmente. Um dos grandes nomes que passaram por lá foi o ex-volante Zé Elias, pelo Omonia. Outro “destaque” é a ex-promessa Lulinha (que só tem 31 anos!), que jogou lá em 2018. Confira essa reportagem do Yahoo! a vida do jogador brasileiro do futebol cipriota.