Besiktas e o clube do povo
Essa é a primeira parte de uma reportagem sobre a torcida do Besiktas, e o grupo de ultras çArsi, publicado em 2011, pela revista The New Yorker.
Em uma manhã fria e úmida de dezembro, fui a Istambul para assistir a um jogo do Beşiktaş jogar contra o Bursaspor, da cidade de Bursa, a capital otomana original.
“Você vai ouvir todo tipo de palavrão”, alertou o taxista. “Você vai ouvir coisas que nunca ouviu e que ninguém deveria ouvir.” Ele parecia genuinamente preocupado.
"Tudo bem", eu disse. “Eu quero aprimorar meu conhecimento em turco.”
“Se você quer aprimorar seu conhecimento da língua turca, não creio que uma partida do Beşiktaş é o primeiro lugar que eu aconselharia.” O resto da viagem ficamos em silêncio.
Futebol é levado muito a sério na Turquia. Em 1981, uma partida entre o Karşiyaka e Göztepe, duas equipes de Izmir que jogam a segunda divisão, atraiu 80 mil torcedores. Em um jogo de treino entre os dois rivais, em 2003, um torcedor foi morto a facadas. Para o nível europeu de fanatismo, é raro encontrar esse grau de vida ou morte em torno de dois clubes rivais de segunda linha. E embora praticamente todas as cidades turcas tenham seu próprio time, a maioria dos turcos apóia um dos "três grandes" do país - Galatasaray, Fenerbahçe e Beşiktaş - todos baseados em Istambul.
Durante a década de 80, as torcidas de Istambul eram quase uma gangue, caracterizada por ataques clandestinos, linchamentos e brigas de rua. Uma “trégua” na década de 90 mitigou, mas não erradicou, a violência. Em 2000, dois torcedores do Leeds United foram mortos a facadas na véspera de um jogo contra o Galatasaray. Quando o Galatasaray se classificou para o Champions League, naquele ano, os torcedores festejaram com tiros para o alto, e balas perdidas mataram uma pessoa e feriram quatro. O goleiro dinamarquês Peter Kjær, que jogou pelo Beşiktaş em 2001, foi atacado por um homem em uma cadeira de rodas quando os torcedores invadiram o campo.
Cada time em Istambul tem seu próprio estereótipo. O Galatasaray, o mais antigo, está associado ao Galatasaray Lycée, da elite da era otomana. O Fenerbahçe tem o maior orçamento e a base de fãs mais ilustres (inclui o primeiro-ministro Recep Erdoğan e o ganhador do prêmio Nobel, Orhan Pamuk). Beşiktaş é o azarão, o time da classe trabalhadora, conhecido pela torcida fanática. De acordo com um estudo, o mercado de ações turco sobe quando Beşiktaş vence um jogo - um sinal, teorizam os economistas, do fanatismo de seus apoiadores.
O cineasta Zeki Demirkubuz, que cita Dostoiévski como sua maior influência, chama o Beşiktaş de "o time mais surreal do mundo". Fenerbahçe e Galatasaray "só se preocupam em vencer", mas o Beşiktaş é uma torcida "essencialmente irracional e, portanto, essencialmente humana". Os cantos do Beşiktaş são caracterizados por uma profanação exagerada e pela poesia de saudade e amor - amor não correspondido, amor que leva você à morte. “Era um dia chuvoso quando te vi”, começa uma das letras. "Você usava uma camisa listrada."
Em dias de jogos, as ruas ao redor do Estádio Inönü, onde joga o Beşiktaş, ficam intransitáveis, então eu desci do táxi em uma estação de metrô e peguei o trem para o resto do caminho. Inönü está situada na margem ocidental europeia do Bósforo, perto do Palácio Dolmabahçe, onde os últimos seis sultões governaram e onde Mustafa Kemal Atatürk, o fundador da república, estabeleceu sua residência em Istambul. Duas horas antes da partida, a rua ao redor do palácio já está superlotada de torcendo usando mantas e chapéus em preto e branco do time. A cada poucos metros, senhores vendiam bandeiras e capas de chuva do Beşiktaş.
Os torcedores do Galatasaray e do Fenerbahçe estão espalhados pela cidade, mas a torcida do Beşiktaş tem seu núcleo no bairro operário de mesmo nome, onde, hoje em dia, foi gentrificado com hotéis boutique, lojas de grife e franquias de fast-food onde costumavam ser barbearias, casas de jogo, parques e até mesmo a tumba de Barbarossa (um dos líderes da revolucação otomana).
A principal torcida organizada do Beşiktaş são os Çarşi, que significa algo como "mercado" ou "centro da cidade". Quase todo espaços aberto no centro de Beşiktaş - o mercado de peixes, o Parque dos Poetas, a praça do lado do pub Kazan - são um local sagrado de pré-jogo dos Çarşi. Nos trapos da torcida, as letras são rabiscadas em preto ou branco, com o "A" substituído por um símbolo de anarquia vermelho. Na internet ou panfletos, a ortografia utilizada é “çArşi”. Outros elementos básicos da iconografia Çarşi incluem o símbolo Beşiktaş, uma águia negra e o rosto de Che Guevara.
Antes do jogo contra o Bursaspor a minha ideia era se encontrar com Alen Markaryan, um Çarşi “amigo” (assim mesmo, em português), ou seja, o responsável por coordenar os cantos durante os jogos. Amigo Alen é também a imagem pública do grupo: aparece na televisão, visita universidades, escreve colunas em jornais e dá entrevistas. Mas quando tentei entrar em contato, ele não estava disponível, pois havia sido baleado recentemente por um outro amigo Çarşi menos popular. Após um relação meio turbulenta, os dois amigos combinaram uma conversa em um píer no lado leste do Bósforo. A conversa não terminou bem, e agora o Amigo Alen estava no hospital fazendo uma cirurgia para um ferimento à bala no joelho, e o outro homem aguardava julgamento.
Assim sendo, dois dos principais membros dos Çarşi não estavam disponíveis para uma conversa. Em vez disso, combinei de me encontrar com um estudante chamado Deniz, um jovem magro com cabelos desgrenhados cor de palha, e que conhecia o Amigo Alen.
“É isso aqui”, Deniz disse, sorrindo. “Isto é Beşiktaş.” À nossa esquerda, a fachada rosa do Palácio Dolmabahçe e a extensão prateada do Bósforo, com cargueiros quase transparentes. À nossa direita, o Estádio Inönü no alto de uma colina, a multidão em torno, e a polícia alinhada atrás de barreiras temporárias. O ambiente era elétrico, e o clima mais terrível. Homens entre os 15 e 45 anos marchando debaixo de chuva, e entoando cantos do Beşiktaş.
Deniz apontou para os ônibus de torcedores do Bursa, com o crocodilo do Bursaspor ao lado. Os torcedores do Bursa e do Beşiktaş estavam impedidos de assistir aos jogos como visitante desde 2003, quando o Bursaspor culpou o Beşiktaş pelo rebaixamento da Süper Lig, a primeira divisão turca. De volta a Süper Lig três anos depois, o clube foi o campeão turco em 2010, desafiando a hegemonia das três equipes de Istambul. E pela primeira vez em sete anos, a torcida estava autorizada em Inönü.
"Provavelmente vai haver algum incidente", disse Deniz. "A polícia vai tentar disperasar todo mundo ao mesmo tempo e certamente vai haver um incidente.” Os vários grupos se amontoavam - os torcedores em preto-e-branco do Beşiktaş, a polícia com escudos antimotim, e torcida do Bursa, em verde-crocodilo. "É melhor sairmos daqui", disse Deniz, sem mover um centímetro. Ele demorou quase um minuto e até ficou na ponta dos pés para ver o que estava rolando, e enfim se virou e me conduziu rapidamente ao longo da avenida arborizada em direção ao centro de Beşiktaş.
De lá nós fomos ao pub Kazan, lotado a ponto de transbordar, e nos sentamos em um jardim das proximidades. “Todo tipo de pessoa faz parte dos Çarşi”, Deniz disse. “Professores, médicos, meninos de rua.” Deniz foi ao seu primeiro jogo, nos braços do irmão, quando tinha 22 dias de idade. “Na nossa rua, todos os edifícios, exceto um, são Beşiktaşli”, explicou ele. “Beşiktaşli” significa tanto quem mora em Beşiktaş, quanto um torcedor do time
Nos últimos sete anos, Deniz não foi a apenas dois jogos do Beşiktaş, em casa ou fora – e ele se arrepende de não ter ido àqueles dois jogos. Ele caracterizou o Beşiktaş como o azarão, o time das viradas, e falou sobre os slogans dos Çarşi, em faixas gigantes durante as partidas. “Somos Todos Negros”, proclamava uma faixa, após os rivais se referiram a raça do franco-senegalês do Beşiktaş, Pascal Nouma. Quando a torcida Fenerbahçe ironizou o técnico Beşiktaş cujo pai era servente, havia faixas dizendo "Somos Todos Serventes". E quando um comitê de astrônomos removeu Plutão da lista de planetas, o Çarşi assumiu a causa: “Somos Todos Plutão”.
“Não somos hooligans”, Deniz me disse. “Estamos um nível acima do hooliganismo.” Numa mesinha minúscula, com a chuva batendo nas árvores, tomamos chá em copos em forma de tulipa. “Somos apaixonados, não briguentos. Mas quando surge uma briga, batemos melhor do que ninguém. Não deixamos ninguém andar pelo bairro com a camiseta do Fenerbahçe ou do Galatasaray.”
"Como assim, vocês não deixam?"
"Nós o fazemos tirar a camisa." Ele disse que não rato ver torcedores rivais andando sem camisa pelo bairro no meio do inverno.
Perguntei a Deniz sobre Amigo Alen. "Ele é armênio", observou Deniz.
A primeira coisa que todos dizem sobre o Alen é que ele é armênio. Uma revista política certa vez declarou que Beşiktaş representa "o único lugar onde o problema armênio foi resolvido”. Deniz me disse que o tiroteio não foi grande coisa. “Esse tipo de coisa costuma acontecer com a gente”, disse ele.
“Pessoas sendo baleadas?”
"Bom, nem sempre é um tiro”.
Um outro tiroteio entre os líderes Çarsi ocorreu em 2007, resultado de uma discussão sobre uma bandeira que hostilizava um ex-técnico do time.
Deniz iria assistir ao jogo no reduto dos Çarşi: as arquibancadas cobertas. Existem seis mil lugares nesta seção, e quase todos são comprados antecipadamente para a temporada inteira. O punhado que resta desaparece em poucos minutos, uma vez que estão à venda. Mas o grosso da torcida está nas arquibancadas normais, que são os lugares mais baratos, onde comprei meu ingresso. Deniz me deixou perto da minha entrada e desapareceu na multidão.
De repente eu estava num amontoado de de cotovelos, ombros e costas. Em algum ponto, senti meus pés se erguerem do chão. Apesar de meus esforços para avançar, o empurra-empurra era violento e meio que escorreguei em uma poça de lama. Uma rajada de vento soprou meu capuz, e um homem a minha frente parou de andar. "Há uma senhora aqui!", ele ordenou. “Todos se afastem! Deixe a senhora passar!" Para minha surpresa, todos se afastaram e me deixaram passar. Como num passe de mágica, entrei nas arquibancadas ao som música de abertura do hino nacional.
A capacidade oficial do estádio é de 32 mil, mas os grandes jogos costumam superlotadar além disso. Cada assento nas arquibancadas tinha alguém em pé, quando o hino nacional terminou, todos os homens ao meu redor ergueram o braço direito, balançaram as mãos no ar e começaram a entoar: “Ei, você! Bursa bicha, Bursa bicha!” O grupo de torcedores do Bursa, os Texas, estavam à nossa direita, numa espécie de gaiola de metal projetada para impedir a entrada de projéteis.
Os jogadores apareceram, Beşiktaş em seu deslumbrante uniforme listrado em preto e branco. É difícil deixar de notar no futebol a diferença entre os jogadores e os torcedores. Para quem tudo isso era mais real? “Os atletas competem pelo jogo”, uma vez escreveu Umberto Eco, em ensaio sobre futebol, “mas os torcedores competem a sério (e, de fato, até brigam entre si ou morrem de ataque do coração nas arquibancadas).” Eu ouvi uma opinião semelhante de um membro dos Çarşi. “Os jogadores só jogam a partida”, disse ele. “Nós vivemos a partida.”
Por Elif Batuman, para a revista New Yorker - fevereiro de 2011
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PRORROGAÇÃO - Ou Coisas que valem mencionar
Sobre os ultras…
Confira a parte 2 da reportagem sobre os çArsi do Besiktas, suas ações políricas, protestos anti-governo e também muita violência.
Sobre a autora…
Elif Batuman é uma acadêmica americana de origem turca, autora do livro “O Idiota”, indicado ao Pulitzer de ficção em 2008. O texto original, The View from the Stands, é uma das melhores reportagens de futebol da última década.
Sobre o Amigo…
Amigo Alen, impossibilitado de fazer uma entrevista por ter levado um tiro, tem 54 anos e é dono de um restaurante de kebap em Istambul. Além de porta-voz dos çArsi, ele é um dos líderes da torcida no estádio.