Besiktas e a ideologia Çarsi
Ações sociais, protestos anti-governo e violência: os ultras do Besiktas são um dos mais ativos de Istambul. Confira a parte 2 da série sobre o clube.
Algumas horas depois do jogo do Besiktas, peguei uma balsa para o lado asiático da cidade, para assistir a um jogo noturno do Fenerbahçe, o rival mais desprezado do Beşiktaş. Minha prima, Elvim, estava com alguns colegas de trabalho, admirados por eu ter assistido a uma partida do Beşiktaş das arquibancadas. "Teve uma hora em que você pensou que iria morrer?", um urologista perguntou.
"Olha isso", disse Evrim, apontando para o iPhone. "Duas pessoas foram esfaqueadas no jogo que você foi."
Os esfaqueamentos ocorreram exatamente como Deniz tinha previsto, quando os ônibus de Bursa chegaram. Centenas de torcedores do Beşiktaş invadiram a barricada policial, armados com pedras e garrafas. A polícia reagiu com cassetetes e gás lacrimogêneo. Quando o conflito acabou, quatro pessoas precisaram ser hospitalizadas: três torcedores do Bursa, dois dos quais com ferimentos a faca, e uma do Beşiktaş, de 34 anos, que foi atingida na cabeça por uma garrafa.
O sociólogo Ahmet Talimciler, autor de um livro sobre o fanatismo no futebol turco, recentemente perguntou a 1.500 torcedores turcos o quanto o seu time era importante para eles. Para 62% dos entrevistados, o time estava “apenas atrás da família e do país”; para 32%, era “mais importante do que qualquer outra coisa” na vida. De acordo com outra estimativa, 76% dos turcos são torcedores ativos de um clube de futebol.
O futebol foi trazido para o Império Otomano na década de 1870, por mercadores britânicos nas cidades portuárias de Thessaloniki, Izmir e Istambul. A chegada coincidiu com o início do Período de Despotismo, durante o qual o sultão Abdülhamid II revogou a constituição, dissolveu o parlamento e instituiu uma rede de espiões para salvaguardar os valores turcos contra as infiltrações culturais ocidentais. Os turcos foram efetivamente proibidos de jogar futebol. Mas o jogo pegou com os gregos locais, e os amistosos com os britânicos tiveram a presença de um público turco cada vez maior. Para os turcos, o futebol era originalmente - e, por alguns anos, exclusivamente - um esporte para espectadores.
O primeiro time de futebol muçulmano na Turquia foi fundado em 1901, por um estudante chamado Fuat Hüsnü Kayacan, que um dia, supostamente em virtude de seu excelente domínio do inglês, adquiriu uma bola de futebol usada. Recrutando vários jovens de um café do bairro, ele deu a sua equipe um nome inglês - Black Stockings - em uma tentativa de despistar os detetives do sultão. Mesmo assim, o Black Stockings foi confiscado após seu primeiro jogo, uma derrota por 5 a 1 contra um time grego. Kayacan, que havia marcado o único gol do time, foi julgado em um tribunal militar e condenado por "usar as mesmas roupas que os gregos e realizar exercícios com bola", mas escapou de uma punição grave, provavelmente porque seu pai era um almirante famoso.
Em 1908, o governo absoluto do sultão foi desafiado pelos Jovens Turcos, que incentivou o futebol como meio de ocidentalizar e nacionalizar a juventude turca. Alguns muçulmanos ainda desaprovavam o esporte, pois o chute de uma bola do tamanho de uma cabeça parece a reencenação simbólica de um trauma histórico islâmico; a decapitação de Hossein, neto de Muhammad, em 680 D.C, cuja cabeça foi chutada pelos seus assassinos. No entanto, em 1910 uma liga de muçulmanos passou a ser jogada às sextas-feiras. A liga não-muçulmana era jogada aos domingos. Após a Primeira Guerra Mundial, quando os Aliados ocuparam Istambul, os turcos de orgulhavam especialmente das vitórias do Fenerbahçe, Galatasaray e Beşiktaş contra as equipes das forças britânicas.
O futebol adquiriu novos usos políticos após o golpe de estado de 1980: um marco na história do pós-guerra turco, quando uma junta dissolveu o governo, expurgou e prendeu todos os "extremistas" e instituiu três anos de regime militar sob princípios nacionalistas-secularistas. Alegando que a capital merecia um time da primeira divisão, o líder da junta, general Kenan Evren, manipulou pessoalmente as regras da Copa da Turquia para promover o time de Ancara à Süper Lig. Alguns anos depois, antes das eleições de 1987, o então presidente, Turgut Özal, promoveu os times Kocaeli e Bursa da segunda para a primeira divisão, no meio da temporada, invalidando todos os jogos que haviam sido disputados - um ato populista pelos votos da região do noroeste, em Anatólia. Özal também ajudou a restabelecer a extinta terceira liga profissional, a qual o sociógo Talimciler chama de “liga política”; agora, todas as cidades da Turquia podiam ser manipuladas por meio do futebol.
Outro escândalo político-futebolístico emergiu de materiais do WikiLeaks. Um telegrama diplomático americano que vazou em 2010 afirmava que, depois que o partido conservador islâmico no governo perdeu a corrida para prefeito de 2004 na cidade de Trabzon, no Mar Negro, o primeiro-ministro Erdoğan nomeou seu amigo Faruk Nafiz Özak presidente do time de futebol de Trabzon, além de transferir “vários milhões de dólares de uma das reservas ocultas do Primeiro Ministério” para financiar a compra de novos jogadores.
Erdoğan classificou o assunto como “fofoca” e que Özak, na verdade, já tinha uma longa história com a equipe. Mas a história amplificou uma tensão real e duradoura entre os conservadores da Anatólia e a cosmopolita Istambul, e a noção que o futebol turco é a manifestação de um jogo mais profundo sendo jogado por debaixo da mesa.
Segundo Talimciler, na Turquia o futebol é realmente o ópio do povo. Nos anos após o golpe de 1980, quando as reuniões políticas foram barradas, o governo “usou o futebol para preencher o vácuo deixado pela política”. E ainda assim os Çarşi, que se formou durante este tempo, desenvolveu muitas das características externas de um partido político. As posições do grupo sobre questões nacionais são publicadas nos jornais. Seus representantes são convidados para falar no parlamento e em comícios políticos. Um integrante me confessou que nunca gostou muito de futebol e que se sentiu atraído pelos Çarşi por seus programas sociais de esquerda.
Os Çarşi são um estudo de caso interessante para a teoria do fanatismo por futebol de Umberto Eco, que ele vê como uma paródia sistemática da consciência política: você critica os jogadores em vez do desempenho do parlamento, questiona o treinador em vez do ministro das finanças. O esporte drena, assim, os mesmos recursos - “possibilidades de julgamento, agressividade verbal, competitividade política” - que o cidadão usaria para o debate político.
Mas os Çarşi expressa energias políticas ou apenas as absorve? É um grupo político ou apenas o simulacro de um? Quando perguntei a um dos fundadores do grupo por que a foto de Che Guevara em um dos logos, ele meio que encerrou conversa: "Che está em meu chapéu há vinte anos". Outro membro me disse que, embora todas equiques reverenciem Atatürk, por ser o fundador da República da Turquia, no Beşiktaş o líder é adorado pelos seus traços “mais humanos”, como a fraqueza dele pelo álcool: um canto rimado diz: “Nos passos de nosso pai / Vamos todos morrer de cirrose. ”
Ninguém sabe dizer o tamanho exato dos Çarşi, como alguém se torna um membro ou como os líderes, que não são chamados de líderes, adquirem o seu poder. Quando pressionados por detalhes, os membros do Çarşi citam um longo poema chamado "O que é Çarşi?", que todos sabem de cor:
Çarşi está na pergunta "Qual é o placar?", a primeira coisa dita por um homem resgatado de um deslizamento de terra na mina Zonguldak. . . .
São as pessoas nas arquibancadas: um médico, um trabalhador, um empresário, um menino de rua analfabeto, um professor.
São o esquerdista, o direitista, o ateu, o peregrino, o muçulmano, o armênio, o judeu, o cristão, que pulam para cima e para baixo, ombro a ombro, com lágrimas nos olhos, gritando a plenos pulmões: “Meu Beşiktaş , meu primeiro e único amor!"
Eu aprecio o “O que é Çarşi?” pela maneira distinta e humana de te dizer tudo e ao mesmo tempo não o suficiente - de multiplicar, em vez de resolver, as contradições. Çarşi são "as pessoas nas arquibancadas", mas "não é um grupo de pessoas". É um espírito rebelde incorrigível, uma filosofia de preto e branco, um apaixonado louco, uma forma de morte, a águia no nariz de um F16.
Os Çarşi insistem que não tem "nenhuma hierarquia" e "nenhum líder”. Não realiza eleições ou reuniões oficiais. “Na verdade, não somos uma associação ou organização. Não temos um cabeça”, disse Amigo Alen aos repórteres. “Çarşi não é um grupo - é um espírito compartilhado.”
Ainda assim, Çarşi tem um círculo interno, com vários “irmãos mais velhos”, com quem finalmente consegui contatar por meio do administrador do site oficial, Alaattin Çam. Um burocrata na casa dos quarenta anos, Alaattin vive e trabalha a cinco horas de Istambul. Ele assiste a todos os jogos do Beşiktaş e coordena vários programas de extensão do Çarşi em hospitais infantis e lares de idosos. Depois de um incêndio florestal em Antalya, os Çarşi arrecadaram tanto dinheiro que a floresta foi renomeada para Floresta Beşiktaş. Os membros do Çarşi adoram doar sangue e falam sobre isso constantemente. Alaattin me enviou um arquivo enorme cheio de fotos de homens com a camiseta do Beşiktaş, deitados com tubos nos braços e fazendo caretas como soldados feridos.
“Vamos a algum lugar onde possamos conversar”, disse Alaattin quando o conheci, perto do pub Kazan, numa noite de inverno chuvosa. Andamos por várias ruas estreitas próximas ao estádio, até uma sorveteria de três andares, em um terraço. Um garçom correu atrás de nós e acendeu a lâmpada de aquecimento. Pedimos dois copos de chá.
“Quero ser útil para você”, disse Alaattin, acendendo um Marlboro. “Mas primeiro eu preciso te conhecer e ver que tipo de pessoa você é.”
Acho que sou inofensiva, porque Alaattin logo me apresentou aos irmãos mais velhos Çarşi. Eles se encontram no Eagle Café, uma casa de chá no centro de Beşiktaş, cujas paredes brancas são pontilhadas com itens de Beşiktaşiana. Quando entramos, senhores com lenços preto e branco jogavam cartas sob luzes fluorescentes; um jovem de sobretudo estava curvado sobre um jornal. O grupo Çarşi estava sentado em torno de uma grande mesa na parte de trás.
Ayhan, um homem de fala mansa, com feições jovens, mas com abundante cabelo grisalho, veio me cumprimentar. “As pessoas pensam que estamos trabalhando em um prédio de três andares com computadores”, disse ele. “Eles não sabem que são apenas cinco ou seis pessoas em um café.”
Ele me apresentou a dois dos fundadores de Çarşi, Hakan e Camel, e a um homem mais jovem chamado Autobahn. Muitos membros do Çarşi são conhecidos apenas pelos apelidos. “Podemos falar em inglês, se quiser”, disse um deles. "Acho que vai te ajudar a relaxar."
“Ele é advogado e torcedor do Beşiktaş, então nos ajuda quando precisamos”, explicou Ayhan. Eu perguntei se Çarşi precisava frequentemente de aconselhamento jurídico. Todos na mesa concordaram. O debate atual eram algumas leis anti-hooliganismo, aprovadas às pressas no parlamento após os esfaqueamentos do Bursaspor. Elas incluíram um mandato de prisão para quem tentasse levar armas, facas e outras armas para os estádios. Alguém dos Çarşi teria de viajar até Ancara para fazer uma declaração perante uma subcomissão parlamentar sobre violência no esporte. Quem iria, agora que Amigo Alen estava confinado em sua cama? Todos pareciam inclinados a enviar Ayhan, exceto Ayhan, que parecia ser o responsável. (Ele acabou indo de qualquer maneira.)
Quando se trata de política, Ayhan prefere ficar à margem. A certa altura, ele sugeriu, brincando, que Çarşi poderia me sequestrar, a fim de obter concessões do governo americano. "Vamos colocá-la em algum lugar legal por uma semana. O que você diz?" Enquanto isso, Ayhan e Hakan já haviam começado a discutir os termos legais da minha libertação. Eles pediriam que todos os amigos fossem libertados da prisão e queriam que a baía de Guantánamo fosse fechada.
Ayhan falou com orgulho da rápida resposta dos Çarşi ao Prêmio Nobel de Orhan Pamuk. O escritor havia caído em desgraça política pelos seus comentários sobre o genocídio armênio, e a reação doméstica não foi das melhores. Todavia, embora Pamuk torça pelo Fenerbahçe, Çarşi fez uma bandeira pró-Pamuk antes mesmo que o Fener conseguisse dizer alguma coisa.
"Você gosta de Orhan Pamuk?", eu perguntei.
“Como escritor?” Ayhan, deu de ombros. “Ele tem bons livros. E alguns que eu não gosto. "
O Beşiktaş Gymnastics Club foi fundado em 1903, no jardim de uma mansão amarela de um membro da administração otomana. Os alunos da escola de oficiais se reuniram lá para se exercitar nas barras paralelas. “A maioria deles morreria nas guerras dos Bálcãs ou na Primeira Guerra Mundial”, disse Ayhan. Pela maneira como ele contou a história, esses jovens oficiais de Beşiktaş não tinham a menor chance: soldados de infantaria do império em declínio, numa última resistência contra a Europa.
“Somos o primeiro grupo fanático da Turquia”, disse Dervish sobre os Çarşi. “Somos a primeira organização hooligan da Turquia, que remonta a 1982.”
“Vocês se consideram hooligans?” perguntei, ao lembrar que Deniz havia dito que eles não eram hooligans, mas um nível acima.
"Sim", afirmou Dervish. “E não reconhecemos mais ninguém como hooligans aqui na Turquia.”
“Aqui na Turquia, não”, concordou Autobahn. “No exterior, têm alguns.”
Por Elif Batuman, para a revista New Yorker - fevereiro de 2011
Gostou do texto? Assine a newsletter e receba direto no e-mail.
PRORROGAÇÃO - Ou Coisas que valem mencionar
A trilogia Çarsi…
Confira a parte 1 da reportagem. E neste link tem a parte 3.
A mais engajada…
Em 2016, a torcida do Besiktas fez um “cântico silencioso” com linguagem de sinais durante um jogo em apoio a deficientes auditivos. Confira na Trivela.
A mais barulhenta…
Certa feita a torcida do clube também foi eleita a mais barulhenta do mundo, registrando 140 decibéis durande uma partida do clube.
Moral da história: uma Gaviões da Fiel só que piorada. 🤷🏻♂️