Uma final que o tempo matou
A final europeia de 1970 mudou o futebol para sempre, com inovações táticas, mudanças nas fórmulas, e uma inesquecível final entre Feyenoord x Celtic
Na mesma semana em que eu escrevia o epílogo do livro “À Sombra de Gigantes”, em 2017, o Manchester City fez 4 a 0 no Feyenoord, em Rotterdã e, um dia antes, o Paris Saint-Germain havia patrolado o Celtic por 5 a 0, em Glasgow (eles ainda fariam 7 a 1 no Parc des Princes). Dois times de torcidas gigantes e títulos europeus não os impediu do massacre contra os petrodólares. Quatro anos depois, a Superliga dos “grandes clubes” não quer que nem, ao menos, eles possam jogar.
É o futebol dos burocratas e agiotas, e que parece um caminho sem volta.
Mas esse relato é o de uma volta.
Aquele Feyenoord x Celtic na final europeia de 1970.
O primeiro carrossel holandês
O Feyenoord derrotou o Celtic por 2-1 na final da então Liga dos Campeões1, tornando-se a primeira equipe holandesa a vencer o torneio e inaugurando um período de intensas mudanças no futebol, tática, estética e comercialmente. A história atribuiu ao Ajax a revolução do jogo na década de 1970, mas a década começou com o Feyenoord. E o futebol moderno, pode-se argumentar, começava aqui.
"A Copa do Mundo de 1970 foi um daqueles eventos que devem ser deixados nas cores vivas do imediatismo, sem excesso de análise retrospectiva", escreveu Hugh McIlvanney após a final. O jogo contou a história por si só. A final da Champions de 1970, por outro lado, pode ser vista como uma ponte entre o futebol antigo e o novo. Foi uma competição de “a primeira vez” e “a última vez”, onde o arcaico (moedinhas decidindo a classificação, multidões de mais de 100 mil pessoas) se sentou lado-a-lado da modernidade (inovação tática, comercialização de TV) e, culturamente, representou a ascenção da Europa continental e o declínio do pós-império britânico.
O Celtic, derrotado na final, já havia conquistado uma das vitórias mais significativas da época. Três anos antes, a equipe de Jock Stein tornou-se o primeiro time britânico a vencer a Liga dos Campeões, destruindo a Inter de Milão, de Helenio Herrera. Ao fazer isso, o Celtic também se tornou o primeiro time do norte da Europa a vencer a competição, que em todas suas edições até 1967 havia sido dividido entre times espanhóis, portugueses e italianos. Foi um momento crucial.
“Todos na época admiravam a Itália e a Espanha”, lembra Wim Jansen, meio-campista do Feyenoord na final de 1970. "No momento em que um clube de um país diferente foi campeão, todos os outros países começaram a acreditar que também poderiam." No início do torneio, o Celtic estava entre a elite da Europa. O Feyenoord estava em uma trajetória ascendente, fazendo a dobradinha do Campeonato Holandês e a Copa da Holanda em 1969, porém eliminado da Copa da Uefa daquele ano logo na primeira fase para o Newcastle United. O clube fez uma mudança ambiciosa de treinador, trazendo o enigmático austríaco Ernst Happel para a Liga dos Campeões.
O caminho até a final
Os dois finalistas mostraram a sua força logo na segunda fase, o Feyenoord contra o atual campeão Milan e o Celtic contra o então cinco vezes finalista Benfica. O Celtic passou por cima no jogo de ida em casa, vencendo por 3 a 0 e, segundo um jornal de Glasgow, um lugar nas quartas-de-final estava garantido "a menos que um milagre aconteça entre nós". E o milagre quase aconteceu. Em Lisboa, o Benfica marcou o 3 a 0 com um gol nos acréscimos. Com o placar zerado na prorrogação, o vencedor foi decidido num cara-ou-coroa no escritório do árbitro.
Essa foi a primeira competição europeia com o gol fora de casa valendo como desempate, em caso de empate no saldo. Mas resultados iguais (no caso de Celtic e Benfica), a decisão era na moedinha. Os dois capitães decidiram a tarefa de escolher o lado da moeda: Billy McNeill, o primeiro britânico a erguer a Liga dos Campeões, e Mario Coluna, que jogou em todas as cinco finais anteriores pelo Benfica.
Segundo a lenda, contada pelo ex-capitão do Celtic, o árbitro não conseguiu pegar a moeda depois jogar pra cima e, ao cair, ela bateu no pé dele, ricocheteou contra a parede e rolou pelo chão pela borda até parar imóvel. Deu cara.
O Celtic estava classificado.
Entre os dissidentes desse formato estava o próprio presidente do Celtic, Sir Robert Kelly, pois era "uma maneira muito insatisfatória de encerrar um empate tão vital em qualquer competição". Como presidente da Associação Escocesa de Futebol, ele já havia pedindo à UEFA a extinção do cara-ou-cora desde 1960. Aquela foi a última noite em que um empate na Europa foi dicidido na moedinha. A UEFA introduziu os pênaltis - as primeiras vítimas do novo sistema, claro, foram escoceses: na extinta Recopa da Europa, o Aberdeen perdeu nos pênaltis por 5-4 para o Honvéd.
O Feyenoord, por sua vez, chegou às quartas-de-final com uma vitória emblemática sobre o Milan, franco-favorito após por ter patrolado o Ajax na final de 1969. O Milan venceu por 1 a 0 em San Siro, e antes do jogo de volta, o técnico italiano Nereo Rocco mostrou-se cauteloso: “A primeira impressão que tivemos do jogo holandês não foi a correta. O Ajax jogou sem cérebro em Madrid [na final de 1969]. O Feyenoord trabalhou de forma muito mais sensata em Milão." Não deu outra. Em Roterdã o Feynoord abriu o placar aos seis minutos, e aos 35 do segundo tempo, a cabeçada de Wim van Hanegem coroou uma atuação dominate para fazer o 2 a 0.
Uma das explicações poderia ser a final da Copa Intercontinental: o Milan havia acabado de vencer o título contra o Estudiantes, em Buenos Aires, apenas quatro dias antes. Foi aquela selvageria típica entre times sul-americanos e europeus da época. As estrelas do Milan foram brutalmente perseguidas em campo: Pierino Prati foi nocauteado, e camisa branca de Néstor Combin ficou vermelha de sangue depois de ser atingido no nariz. Além disso, o vôo de volta foi atrasado porque Combin, nascido na Argentina, foi detido pela polícia militar por suposta deserção do exército. Digamos que não foi a preparação ideal para o jogo contra o Feyenoord.
As circunstâncias sem dúvida favoreceram os holandeses, mas a vitória foi merecida. O rápido progresso do jogo holandês pegou o resto da Europa de surpresa. Força física, aliada à inteligência técnica e tática, foi a base da Holanda na década de 1970 e encontrou sucesso pela primeira vez durante a campanha do Feyenoord. Segundo David Winner, em seu livro “Brilliant Orange”, até uma dieta alimentar aprimorada contribuiu para o sucesso. O futebol profissional engantinhava.
Futebol total e a partida que mudou tudo
Depois de eliminar o campeão Milan, o Feyenoord chegou à final sem muito alarido, derrotando o Vorwӓrts Berlin nas quartas, depois o Legia Varsóvia na semifinal, usando a mesma fórmula: uma exibição disciplinada na ida, seguida de uma vitória decisiva em Roterdã. O Feyenoord jogava um 4-3-3 bem equilibrado com ritmo, força e velocidade. No meio-de-campo o destaque era o habilidoso austríaco Franz Hasil, uma peça-chave da campanha. No ataque, um trio formado pelos atacantes Henk Wery, Coen Moulijn e o centroavante sueco Ove Kindvall, a única “estrela” do elenco (três vezes artilheiro do Holandês, único estrangeiro a fazer isso, até Romário).
Apesar de alcançar a final europeia, o Feyenoord ainda estava envolvido na disputa pelo título holandês com o Ajax e precisava de uma vitória em Amsterdã para seguir na briga. Para muitos, a partida que mudou o futebol.
O Feyenoord vencia por 3 a 1 até os 30 mintos do segundo tempo, antes de Johan Cruyff e companhia empatarem e selarem o título para o Ajax. Apesar do resultado positivo, o treinador do Ajax, Rinus Michells, não gostou como o seu 4-2-4 não encaixava contra o 4-3-3 do Feyenoord. O Ajax perdeu a batalha no meio-campo e Michells passou a replicar o esquema do Feyenoord, com um zagueiro central empurrado para frente sempre que possível. O sistema formaria a base do Futebol Total, do sucesso do Ajax tri-campeão europeu, da seleção holandesa na década de 1970 e, para muitos, de grande parte do desenvolvimento tático do futebol nos próximos 50 anos. Curiosamente, o lendário técnico do Celtic, Jock Stein, estava presente na partida, para observar o Feyenoord.
O grande favorito era outro
Se os confrontos do Feyenoord até final não foram glamurosos, o mesmo não pode ser dito do Celtic, que eliminou a campeão italiana Fiorentina nas quartas-de-final (de novo fazendo 3 a 0 no jogo de ida e perdendo na volta). Leeds, Celtic, Feyenoord e Legia Varsóvia foram os semifinalistas, e pela primeira vez na história do torneio, não havia equipes italianas, espanholas e portuguesas representadas nesta fase - e levaria 15 anos para erguerem o troféu novamente (a Juventus, em Heysel).
A semifinal Leeds x Celtic foi o primeiro confronto entre campeões ingleses e escoceses em competições europeias. O Leeds era considerado o favorito pela maioria dos analistas, principalmente os da Inglaterra. O time do técnico Don Revie chegou às semis marcando 26 gols e não sofrendo nenhum. O Leeds era também o atual campeão inglês com um recorde de 67 pontos, com sua reputação de jogo duro e quase violento. Para o torneio europeu ele trouxe o atacante Allan Clarke por £ 165.000, um recorde na Inglaterra e, novamente, liderava o campeonato inglês.
Considerado a "Batalha da Grã-Bretanha", e com cinco partidas em 10 dias, Revie escolheu priorizar a Europa e colocou os reservas contra o Derby County antes do confronto com o Celtic (perdeu por 4 a 1 e uma multa de £5.000 da Federação Inglesa). O jogo colocou frente a frente Don Revie e Jock Stein, dois dos maiores técnicos da época – que eram amigos. “O Leeds não sabe nada sobre o nosso time enquanto nós sabemos tudo sobre o deles”, Jock Stein delcarou na noite anterior ao jogo.
O Celtic abriu o placar aos 45 segundos após o pontapé inicial, e mais uma vitória tática para Stein, com vantagem de 1 a 0 para o jogo de volta em Glasgow. Quinze dias depois, a partida aconteceu no Hampden, transferida do Celtic Park pela procura de ingressos. Foram 136 mil pessoas presentes no estádio - um recorde na Europa que certamente nunca será quebrado. O Leeds saiu na frente, mas o Celtic aplicou a virada no segundo tempo (com o segundo de Bobby Murdoch, um dos maiores jogadores da história do Celtic, campeão europeu em 1968). Celtic classificado a final.
Contra o futebol moderno
Nem todos os torcedores do Celtic ficaram satisfeitos. O clube não permitiu que a BBC transmitisse o jogo pelo rádio, apenas os “melhores momentos” na TV depois da partida. No que talvez tenha sido um primeiro exemplo ‘contra o futebol moderno’, o conselho do Celtic escreveu essa nota:
“Os dirigentes do Celtic querem proteger o futebol da superexposição em rádio e televisão. Quem paga para assistir o jogo no estádio é a força vital do futebol. Os torcedores regulares de futebol devem ser considerados. Há muitas evidências de que a cobertura indiscriminada do rádio e da televisão praticamente acaba matando outros esportes."
A nota é digna de aplausos, mas a decisão dos diretores foi, claro, motivada mais por seus próprios interesses econômicos do que pela defesa do espírito do jogo. As receitas da bilheteria ainda eram a principal fonte de receita dos clubes, mas é interessante notar a crescente invasão da mídia. O ano de 1970 seria um ponto crítico na cobertura da TV. Mais partidas ao vivo do que nunca (130 horas somente de partidas na Copa do Mundo), imagens coloridas e a implementação das mesas-redondas foram fundamentais para o futebol “moderno”. A revolução estava sendo televisionada.
A final da Liga dos Campeões, por exemplo, passou ao vivo para Glasgow em dois dos três canais de TV britânicos da época. Isso despertou um editorial crítico o jornal The Times, com o título “Com raiva do futebol” ("Mad with Football"), expressando o temor de que a cobertura da final representava o fim da TV, e a cobertura esportiva tomaria conta de tudo em pouco tempo. Errados não estavam.
A grande final
Perto da final da Liga dos Campeões de 1970, o fim de temporada dos dois finalistas não poderia ter sido mais diferente. O Celtic garantiu o título escocês de forma antecipada e disputou seu último jogo oficial cerca de duas semanas e meia antes da final. O Feyenoord ainda estava envolvido na disputa pelo título com o Ajax, no qual eles acabarem perdendo naqueles 3 a 3 em Amsterdã.
A final foi no San Siro e mais de 20 mil torcedores do Celtic viajaram até Milão. No guia de viagem escrita no Celtic View, uma dica de comida italiana exótica, a PIZZA: “tortas abertas assadas com com diferentes tipos de recheios”. O Feyenoord, por outro lado, entrava no jogo como azarão - como foi Celtic o na final de 1967 contra a Inter. De qualquer modo, um jornal holandês publicou os detalhes das festividades planejadas em Roterdã no caso de uma vitória do Feyenoord.
O Celtic abriu o placar com Tommy Gemmell (que havia marcado na final contra a Inter), mas o capitão Israel Rinus empatou logo depois. O jogo foi para a prorrogação e, a três minutos do final, o sueco matador Ove Kindvall marcou o gol da vitória. O Feyenoord conquista o primeiro e único título europeu.
Pode até parecer, mas não foi uma zebra. O capitão do Celtic, Billy McNeill, usou de uma honestidade que não se vê hoje em dia. "O placar foi uma farsa", disse. “Os 2 a 1 dizem outra coisa, mas sabemos que a verdadeira diferença foi cerca de quatro gols. Foi um banho de bola. Em nos dominaram em todos os setores do campo."
Chegar à final foi um grande feito para o Celtic que, como em 1967, tinha um elenco inteiro só de jogadores escoceses, mas a decisão em San Siro foi um claro exemplo de como o jogo havia mudado. O jornal milanês Il Giorno descreveu assim: "Os holandeses humilharam o Celtic com seu controle inteligente de bola, fazendo o que queriam, como se os escoceses fossem touros girando e girando numa arena”. Em La Stampa, porém, uma coluna criticava que o romance e a habilidade estavam sendo substituídos por força bruta e fisicalidade.
O legado da final europeia de 1970
Nos anos 1970, o esporte não era mais apenas uma forma de escapismo, e gradualmente passou a ser um negócio. Futebol e capital sempre coexistiram, é claro; mas as oportunidades aumentaram muito na era da televisão. O técnico Jock Stein foi questionado por um jornalista quais mudanças importantes ele previa no jogo. Um dos grandes inovadores da história do futebol, a resposta dele foi simples: "patrocínio".
O Feyenoord foi o primeiro clube a jogar uma final europeia patrocinado, com o logo da LeCoq Sportiff estampado na camisa (o próprio Ajax contaria com o mesmo auxílio da Lecocq, no seu tri-campeonato). Na Copa do Mundo de 1970, até a própria bola passou a ser propriedade da Adidas.
Em campo, o principal legado do triunfo do Feyenoord foi o conceito de espaço. Tornar o campo grande quando o seu time tem a bola e pequeno quando é a vez do adversário. A “arquitetura total” holandesa - uma espécie de teoria de planejamento urbano, com espaço para beleza e improvisação – é, às vezes, citada como precursora do Futebol Total, com particular referência a Amsterdã.
O Ajax transformou o esporte ao vencer três Champions consecutivas. Ainda assim, o Feyenoord foi o campeão holandês duas vezes aquele período, em 1971 e 1974 – além de um título da Copa da Uefa. Eles também forneceram mais jogadores para a seleção holandesa para a Copa do Mundo de 1974 (sete), que acabou sofrendo da “síndrome de Celtic”, vencendo o detentor do título, Brasil, na semifinal, e depois perdendo a final para Alemanha Ocidental, como o grande favorito.
A economia britânica que, junto com o futebol, começava a ficar para trás, voltou os seus olhos para o continente. Em 1973, o primeiro-ministro oficializou a entrada do Reino Unido na Comunidade Econômica Europeia (espécie de pré-União Europeia). O Liverpool seria o campeão europeu em 1977, o primeiro de seis títulos seguidos para times ingleses. A revolução silenciosa de Ernst Happel, técnico do Feyenoord na final de 1970, começava a se espalhar por todo lugar.
Por Michael Galagher, originalmente na edição #36 da The Blizzard.
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PRORROGAÇÃO – OU Coisas que valem a pena mencionar
Feyenoord campeão mund...digo, intercontinental
O clube holandês também venceu a Copa Intercontinental contra o Estudiantes, tri-campeão da Libertadores. O gol do título foi do zagueiro reserva Joop van Daele, que entrou durante o jogo, em Roterdã. Ele perdeu os ÓCULOS na comemoração – que, segundo a lenda, foi então esmagado por um argentino.
Ele também instalava o telefone na tua casa...
Joop van Daele trabalhava na empresa de telecomunicações estatal. Devido aos vários compromissos como jogador ele precisava abrir mão das férias, e continuar trabalhando. Somente após o título europeu Van Daele assinou um contrato profissional com Feyenoord.
“Futebol é nada sem os torcedores”
A famosa frase foi dita pela primeira vez pelo técnico do Celtic, Jock Stein, o maior nome da história do clube. A estátua dele no Celtic Park é uma visita obrigatória numa viagem à Glasgow.
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Na época o torneio se chamava, no Brasil, Copa dos Campeões Europeus.
Muito bom, corneta! Tô adorando os posts, parabéns!