Uma guerra sem tiros
Em 1945 o Dínamo de Moscou fez uma excursão pela Inglaterra. Para o público foi a celebração do futebol e da vitória na II Guerra; para os governos, nem tanto
Milhares de pessoas mortas, cidades inteiras em escombros após o conflito mais sangrento que o mundo já viu. Com grande parte da Europa ainda se recuperando da Segunda Guerra Mundial, não parecia o momento ideal para jogos de futebol.
Mas, em novembro de 1945, um time pouco conhecido no continente faria uma turnê contra vários clubes tradicionais do Reino Unido, então o berço do futebol moderno: o Dínamo de Moscou, campeão da União Soviética.
Os fãs britânicos estavam ansiosos para ver um oponente tão exótico, somado ao interessa pela vitória da União Soviética sobre a Alemanha nazista. Ao redor dos estádios, residentes alugavam os seus jardins frontais para guardar bicicletas e cambistas vendiam ingressos que originalmente custavam apenas 10 xelins por salgados 4 libras - oito vezes o valor nominal.
O desejo de ver a partida era insaciável. Gente nas casas vizinhas, gente que entrou no estádio sem pagar (usando as linhas de trem), e gente a 30 metros de altura nos telhados do estádio. O público oficial do primeiro jogo, em Stamford Bridge, foi de cerca de 75 mil pessoas - estimativas dizem haviam mais de 100 mil.
No entanto, as tensões da Guerra Fria já haviam começado, após o regime comunista de Josef Stalin ocupar a maior parte da Europa Oriental, e como tal, o jogo assumiria conotações políticas. Foi meses após a turnê do Dínamo que o ex-primeiro-ministro Winston Churchill faria um famoso discurso ao qual deu origem ao termo “Cortina de Ferro”, que condenava as políticas expansionistas da União Soviética.
Enquanto os fãs britânicos estavam ansiosos para assistir ao lado soviético, as autoridades estavam muito menos amistosas. O Ministério das Relações Exteriores disse que "seria necessário muito mais do que uma partida de futebol para quebrar as verdadeiras barreiras nas quais o governo soviético acredita firmemente". Pressionado pela embaixada britânica em Moscou, o país acabou concordando com a turnê, mas afirmou que o Dínamo de Moscou não estava sendo hospedado pelo governo, mas pela British Football Association (FA).
A delegação soviética tinha sua própria lista de exigências, como todas as refeições da equipe fossem realizadas na embaixada soviética, aparentemente porque temiam que os britânicos pudessem envenená-los. Moscou também insistiu que o lucro da turnê fosse dividida em 50%, uma demanda que foi atendida.
Quatro jogos foram finalmente agendados, contra os londrinos Chelsea e Arsenal, o galês Cardiff City e o escocês Glasgow Rangers.
A imprensa britânica deu a entender que os times locais e seus torcedores pouco tinham a temer. "Não espere muito do Dínamo. Eles são apenas iniciantes, trabalhadores, amadores", escreveu o jornal londrino Evening Standard.
Em questão de semanas, essa autopercepção de melhor nação do futebol do mundo, seria reconsiderada e o autor George Orwell (autor de “1984”, “A Revolução dos Bichos”, e que pouco escrevia sobre futebol), inclusive escrevia um famoso artigo (“O Espírito Esportivo), se referindo à turnê "uma guerra sem tiros".
A atitude blasé dos britânicos contrastava com os soviéticos.
"Sabíamos apenas que a Inglaterra era a pátria do futebol, e que o futebol inglês era o melhor do mundo", disse o atacante do Dínamo Moscou, Konstantin Beskov, em um documentário de 2001, More Than Just Football. Os jogadores do Dínamo estavam cientes da pressão para representar a União Soviética, que por muitas décadas usaria o para ilustrar a superioridade ostensiva do sistema comunista. "Teria sido uma vergonha se tivéssemos voltado derrotados para Moscou. Teríamos vergonha de mostrar até nossos rostos em público", lembrou Beskov.
Começa a turnê
A primeira partida, contra o Chelsea, aconteceu em 13 de novembro. Cerca de 75 mil ingressos foram vendidos, e o peso da multidão literalmente fez com que os portões ao redor do terreno caíssem no chão.
A torcida do Chelsea ficou pasma quando os jogadores do Dínamo saíram 15 minutos antes do jogo para se aquecer - algo raro no futebol inglês da época. Certamente, desperdiçar energia daquele jeito não era uma boa ideia.
Antes do jogo, os jogadores russos presentearam cada adversário com um extravagante buquê de flores, para constrangimento do Chelsea, que não tinha nada em troca. O que era uma cortesia pré-jogo comum na liga soviética foi recebido pela torcida da casa como algo insoólito. Um fã gritou: "O que é isso então - o funeral de Chelsea?"
De certa forma, ele não estava enganado.
O poderoso Chelsea abriu uma rápida vantagem de 2 a 0, mas o lado soviético superou o nervosismo inicial e, liderados pelo goleiro Aleksei Khomich, empatou em 3 a 3. Após o apito final soou, a multidão entrou em campo, pegando alguns dos jogadores russos nos braços e os levando para o túnel.
"O Dínamo é uma das equipes mais rápidas que já vi na minha vida”, diria o zagueiro Tommy Lawton. “Eles passam a bola de um lado para outro de uma forma desconcertante, muitas vezes em movimento".
O próximo adversário foi o Cardiff City, então um time da terceira divisão, com 40 mil pessoas no estádio. Com a simpatia socialista relativamente alta entre os mineiros de carvão e metalúrgicos do País de Gales, a cidade recebeu calorosamente os visitantes soviéticos, hasteando a bandeira do martelo e da foice acima da prefeitura e presenteando cada jogador com uma lâmpada de mineiro comemorativa.
O Dínamo derrotou o Cardiff por 10 a 1 em um jogo transmitido ao vivo pela Rádio Moscou. Foi de longe a maior goleada que qualquer time britânico sofreu para um time estrangeiro. E o clima da turnê se intensificou consideravelmente. A União Soviética, em tese, era uma nação devastada pela guerra, e o fato deles colocare em campo uma equipe de qualidade tão surpreendente de certa forma abalou a confiança britânica, também aos cacos no pós-guerra.
Os últimos dois jogos
Em 21 de novembro, o Dínamo enfrentou o Arsenal, sem vários jogadores que ainda estavam nas forças armadas em várias partes mundo. O clube colocou em campo alguns jogadores "convidados" de times como Stoke City e Blackpool. Com a suspeita de que enfrentavam uma seleção de astros da Inglaterra, a delegação soviética insistiu que a partida fosse oficializada por um árbitro russo.
A casa do Arsenal, Highbury, ainda estava sendo usada como um centro de treinamento contra ataques aéreos, então a partida foi disputada no estádio do Tottenham, o White Hart Lane. Filas de torcedores se formaram durante a noite, e a polícia autorizou a entrada no estádio desde o horário da manhã.
Uma neblina cobriu a maior parte de Londres naquele dia, e muito pouco da partida dava pra ver das arquibancadas. Entre outros mitos, o Dínamo teria aberto o placar do jogo, sem que qualquer jogador do Arsenal tenha visto a bola - literalmente. O goleiro do Arsenal também teria sido atingido com dois socos e no intervalo foi substituído por um espectator (um jogador do Queen’s Park Rangers).
O Dínamo venceu o jogo por 4 a 3, e juiz foi acusado de favorecer os soviéticos, inclusive anulando um gol legítimo do Arsenal. O jogo foi apelidado de "a farsa no nevoeiro" pelos ingleses e um artigo no jornal Daily Mail definiu como "um dos jogos mais incríveis da história que 54 mil pessoas nunca viram."
A turnê quase foi cancelada, mas uma mistura de desespero para vencer os russos e as enormes rendas fizeram uma quarta partida arranjada, na Escócia.
Na última parada, o Dínamo enfrentou o Glasgow Rangers no Ibrox Stadium e os ingressos foram vendidos no mercado negro por até 10 libras. O jogo terminou 3 a 3 e testemunhou o gol do torneio, marcado por Vasily Kartsev após uma sequência de passes entre Beskov e Vsevolod Bobrov. “O gol mais perfeito já marcado em Ibrox", reportou o jornal Daily Telegraph.
De acordo com David Downing, o autor de “Passovotchka”, livro sobre a excursão do Dínamo em 1945, “eles só ganharam dois jogos, mas o estilo deles de jogo deixou para sempre um cheiro de magia no ar."
O legado da turnê
Com o início da Guerra Fria, o afeto britânico pelo "tio” Stalin se tornou uma memória distante e um convite à FA para participar de uma visita recíproca à URSS em 1946 foi fortemente recusado.
Os jogadores do Dínamo votaram para casa como heróis nacionais. Vários deles foram agraciados com a honra soviética de Mestre do Esporte. Para o estado soviético, o tour provou que o esporte poderia ser usado para retratar uma imagem da força comunista. Antes de mais uma viagem do Dínamo, à Suécia, em 1947, os jogadores foram convocados ao Kremlin, com ordens de derrotar os times suecos por 5 a 0 para lembrá-los da Batalha de Poltava, uma vitória militar russa em 1709.
Konstantin Beskov relembrou o encontro, reforçando a lenda: “Então o ministro pensou um pouco e disse: 'Deixe-os marcar um gol.' Jogamos duas partidas e o placar em cada uma delas foi 5 a 1, exatamente como ele pediu."
Por Tony Wesolowsky para a Radio Free Europe, uma tradução Corneta Press
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PRORROGAÇÃO - Ou Coisas que valem mencionar
Sobre o Dínamo…
Dínamo era o time do serviço-secreto da URSS (a futura KGB) e era presidido por Lavrenty Pavlovich Beria, o chefão do Ministério e braço-direito de Stálin. A outra grande força da época era o CSKA (o time do exército), tricampeão em 1946, 47 e 48. Já o Spartak era o time dos sindicatos, o Clube do Povo em Moscou.
Sobre os ingleses…
A liga inglesa não foi disputada entre 1939 e 1946 por causa da guerra, então é difícil saber porque a mídia achava a Inglaterra super-favorita - arrogância, mais provavelmente. O atacante Stanley Matthews, porém, do Stoke City e que jogou pelo Arsenal nos amistosos, foi o primeiro vencedor da Bola de Ouro, sobre Di Estéfano. Ele jogou duas Copas do Mundo, em 1950 e 1954.
O heroi da turnê…
Konstantin Beskov foi bicampeão com o Dínamo e marcou quase 200 gols pelo clube. Como treinador, ganhou títulos pelo Spartak e Dínamo, além de vice-campeão da Recopa Europeia em 1972, ao perder a final para o Rangers. Ele também treinou a URSS na Copa de 1982 (inclusive na derrota para o Brasil).
Dica de livro…
Se você se interessa por futebol e URSS, fica a dica do livro “A História do Futebol na União Soviética”, de Emanuel Leite Jr, disponível neste link.