Uma Eurocopa globalizada
Apenas um país desta edição da Euro não tem um jogador de dupla cidadania. O futebol europeu é multicultural e essa tendência só vai aumentar
Quando Denzel Dumfries, 25, marcou o gol da vitória da Holanda na estreia da Euro, ele realizou um sonho de criança de defender o país em que nasceu. Mas essa não foi a sua primeira opção. Aos 18 anos, ainda jogando futebol amador nos arredores de Roterdã, Dumfries chegou a jogar duas partidas pela seleção de Aruba, de onde os seus pais imigraram. A história não é única e tem se repetido com maior frenquência em uma Europa cada vez mais globalizada e, claro, pós-colonial.
No total, 17 jogadores mudaram de nacionalidade na Eurocopa. O caso mais emblemático é o do zagueiro Aymeric Laporte, que sempre jogou pelas seleções de base da França, mas ao não ser convocado para a principal, optou em jogar a Euro pela Espanha – o que certa vez ele declarou estar fora de cogitação. Com bisavós bascos, naturalmente, ele foi questionado sobre ser “espanhol o bastante” e a resposta foi um tanto burocrática. “O meu objetivo é o mesmo da Espanha: vencer a competição. Vou dar tudo para ganhar com a seleção nacional e isso é o mais importante ”.
Existe um questionamento válido se isto não estaria transformando as competições de seleções em uma versão nacional da Lei Bosmann, com jogadores “contratados”. Cinco jogadores desta edição literalmente chegaram a jogar por outras seleções principais – incluindo o brasileiro Mario Fernandes, que jogou um amistoso pelo Brasil em 2014. O exemplo do inglês Declan Rice provocou um grande debate na Irlanda. Nascido na Inglaterra de avós irlandenses, Rice chegou a jogar três amistosos pela seleção principal da Irlanda antes de optar pelo English Team, em 2019 – outro inglês, Jack Grealish, também jogou pelas seleções de base da Irlanda.
Perceba que os casos de Laporte e Rice são opostos. Laporte trocou de seleção porque não foi convocado por aquela desejada; Rice era a principal estrela de uma seleção, mas ultimamente trocou por aquela de onde ele nasceu. Em ambos casos, porém, parece sim que eles foram “contratados”, como quem troca de clube.
A diáspora e o direito a escolha dos jogadores
Por outro lado, talvez o principal ponto do debate seja o direito de escolha. Laporte, sim, justificou a sua decisão pelo “lado profissional”, mas tantos outros escolhem por razões afetivas e culturais. Segundo pesquisa do jornal The Independent, 169 jogadores na Euro têm dupla nacionalidade, alguns até com tripla, como David Alaba, que nasceu na Áustria, mas o pai é nigeriano e a mãe filipina.
E poderia ser mais, visto que regras de cidadania variam nos diversos países. Rice defendia a Irlanda pela "regra da avó", por exemplo, pois o país estendeu passaportes de forma bastante liberal para migrantes de terceira geração. Se tornar um cidadão alemão, por exemplo, já não é tão fácil.
A liberdade de movimento, assim como outros eventos e desenvolvimentos que causaram a migração em massa (guerras, genocídios, etc), significa que mais pessoas têm múltiplas nacionalidades do que nunca. De todos os países da Euro, a Polônia é o único que não tem um único jogador elegível para outro país – na Euro de 2016, eles tinham o brasileiro Thiago Cionek, de Curitiba.
É muito comum resvalar na internet em comentários de que muitos jogadores franceses não são...franceses, fruto do casual racismo em uma Europa multicultural. São os casos de Kanté (nascido em Paris), Benzema (nascido em Lyon), ambos de origem na diáspora da África. Se na comemoração de títulos eles carregam bandeiras de Mali e Argélia, respectivamente, é pela forte ligação familiar com aquela região – e isso não os faz menos franceses. Em última instância, tirar esse direito dos jogadores é como renegá-los duas vezes a um plano de colonização.
A Europa não é mais branca – e assim deveria ser
Em países colonizadores, é muito comum usar a “origem” como uma barganha de xenofobia. Certa vez Romelu Lukaku escreveu para o Players Tribune. “Quando eu ganho eu sou belga; mas quando perco, africano”. E isso vale pra Éder, autor do gol do título de Portugal, em 2016, que nasceu em Guiné-Bissau, e para Raheem Sterling, a estrela da Inglaterra, nascido na Jamaica. Cada um desses jogadores escolheu representar o país que eles se identificam – mesmo com todos os motivos contrários.
O assunto é, claro, delicado, mas é equivocado classificar todo jogador da diáspora da África como “africano” - mesmo com a melhor das intenções. Pois essa é a exata narrativa dos jogadores sofrerem xenofobia, de que “não pertencem”, mesmo tento nascido e crescido no país europeu. Cabe ao jogador, e somente ao jogador, mostrar o orgulho pela sua origem, se assim desejar.
Na França, por exemplo, 17 jogadores poderiam representar outra nação, inclusive os “duplos-europeus”, como Griezmann (cujo avô português foi jogador do Paços de Ferreira) e Giroud, de avós italianos. Na sequência, aparecem a Suiça (16), Inglaterra (15), País de Gales (14), Bélgica (11) e Holanda (10). Nos últimos dois casos, é fruto bastante evidente de colonização – seis jogadores belgas tem origem no Congo e cinco da Holanda no Suriname. Pela óbvia composição política do Reino Unido, 18 jogadores de País de Gales e Escócia poderiam jogar pela Inglaterra.
Obviamente, nem todos os casos são frutos do colonialismo europeu. Alguns são simplesmente filhos de casamentos mistos, como o suíço Ricardo Rodriguez (Espanha e Chile) ou mesmo naturalizados – Jorginho, que nunca jogou no Brasil, pela Itália; e o já citado Mario Fernandes, que joga a nove anos pelo CSKA Moscou. A grande maioria, porém, são filhos ou netos de pessoas que migraram em busca de trabalho, ou pelos diversos efeitos do pós-colonialismo, especialmente nas seleções belga, inglesa, francesa, portuguesa e holandesa.
Origem familiar importa
Em muitos casos, jogador decide jogar por outro país simplesmente porque não teve chance na seleção principal – Laporte, Diego Costa, Marlos - ou pelo país de origem dos pais. Dennis Cheryshev jogou a sua vida inteira no futebol espanhol, onde cresceu (pois filho de jogador, Dmitri) e inclusive disse ao jornal Marca, em 2011, que se sentia mais espanhol do que russo. No fim, só lhe restou representar a Rússia. Thiago Alcântara optou pela Espanha, mas o irmão, Rafinha, pelo Brasil.
Também funciona na direção oposta, como é o caso de três turcos que poderiam jogar pela Alemanha. Hakan Çalhanoglu, por exemplo, nasceu na Alemanha e nunca se quer jogou futebol na Turquia. Para alguns é só o desejo de disputar uma Euro, ou Copa do Muito; mas para muitos, é realmente uma questão de identidade cultural. Alguns pais imigrantes são mais preocupados em garantir que seus filhos conheçam suas culturas nacionais, outros são mais liberais a respeito.
Obviamente, ocorrerão falhas no sistema, como parece ser o caso de Laporte, que simplesmente “trocou de camisa”, mas é uma minoria. Até porque na maioria dos exemplos, é o país do futebol mais bem-sucedido que tende a vencer – com o país com menos tradição sendo relegado a segunda escolha. Denzel Dumfries jamais quis defender Aruba, mas é o que sobrou para alguém no futebol amador local. Mas quando a sonhada Holanda ofereceu uma chance, ele abraçou e sorriu.
Por Leandro Vignoli, um original Corneta Europa – com pesquisa via The Independent
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PRORROGAÇÃO – Ou Coisas que valem mencionar
À Sombra de Gigantes...
Se você leu o livro escrito por este autor aqui, talvez lembre que Denzel Dumfries jogava pelo Sparta de Roterdã na época, em 2017. Um ano depois ele já foi transferido ao Herenveen, e então PSV – até finalmente realizar o sonho do Oranje Team.
E um dos times mais culturais da Euro é a...Finlândia?
Nove jogadores finlandeses poderia representar outra nação. Além disso, é a seleção que representa mais campeonatos, com jogadores de 15 ligas estrangeiras, inclusive do futebol húngaro, do Chipre, e um jogador do CF Montreal.
Quádrupla cidadania...
O jovem Ethan Ampadu, 20, nasceu na Inglaterra mas representa o País de Gales (pois a mãe é galesa). O pai dele, o ex-jogador inglês Kwame Ampadu, que jogou bola pelo Swansea City nos anos 90, é filho de uma irlandesa com um ganês.