Um Manchester City de outra era
Os irmãos do Oasis são os torcedores mais famosos. Mas o guitarrista Johnny Marr, ex-The Smiths, narra aqui a sua paixão pelo clube, em capítulo de sua auto-biografia
Eu tinha dez anos a primeira vez que fui a um jogo do Manchester City. Eu gostava de futebol, mas não tinha me decidido entre o City e o United. Toda minha família era de torcedores do United, e suponho que eles pensaram que eu faria o mesmo. O meu tio inclusive me deu uma camisa do Manchester United, que por algum motivo eu nunca usei. Não me entenda mal, George Best era um dos jogadores mais cool da época, mas isso todo mundo sabe. Eu até assisti a um jogo do United, com o meu primo Martin e o meu tio, um jogo contra o Chelsea em Old Trafford que eles perderam por 1 a 0. Porém, em vez de incitar uma fraternidade com os Red Devils, a experiência teve o efeito oposto: quando eu cheguei no estádio, eu não senti...aquele calafrio. Não sei porquê, mas eu simplesmente não curti.
Na semana seguinte o meu amigo Chris Milne e eu fomos sozinhos a um jogo do Man City. Perto do estádio Maine Road eu já sabia que estava no lugar certo e que o meu mundo seria eternamente azul. Mas existe um outro motivo que eu me tornei torcedor do City e, acredite, é que na época o City tinha o melhor time. Foi quase um lance de sorte, que eu pude acompanhar um dos raros momento onde o lado azul de Manchester tinha mais sucesso. Comecei a torcer no final dos anos 60 quando o City estavam no auge, com o trio lendário Mike Summerbee, Francis Lee e Colin Bell.
Eu amava a ideia de que meu time jogava bem e com estilo. As coisas ficaram ainda melhores com a chegada de Dennis Tueart, do Sunderland. Ele era talentoso e habilidoso, e tinha aquela dose certa de marra e atitude também. Dennis Tueart foi meu primeiro heroi no futebol, e entraria para história do City em 1976 ao marcar o gol do título na Copa da Liga, em Wembley, um gol de bicicleta (confira o gol aqui). A única maneira de ter sido mais foda, naquele tempo pra mim, é se ele tivesse marcado o gol segurando uma guitarra Gibson Les Paul ao mesmo tempo.
Frequentar estádios na Inglaterra no começo dos anos 70 era assustador para uma criança, como quase mais nada. Era um coletivo de tribalismo, grosseria e agressividade. Meninos e homens, de mullets ou skinheads, lotavam as ruas usando coturnos, e cachecois amarrados no cinto, numa marcha de barulho intimidador. Ninguém dava a mínima para tamanho. Se você estava dentro, era dentro por inteiro, e se o pau cantasse, o que era quase sempre, ninguém queria saber se você tinha dez anos, ou onze ou qualquer idade, era correr e estar preparado para dar uma voadeira , ou ser o alvo de uma voadeira, como quase todo mundo – era isso ou não fazer parte de uma torcida. Nas arquibancadas, ser acotovelado ou empurrado por caras mais velhos, gritando palavrões, era um aprendizado. Você via caras de brincos, com o cabelo pintado e sobrancelhas raspadas; calças customizadas e meio largas que eram moda, amarradas até a canela, com os coturnos da Doctor Martens e tatuagens caseiras feitas com agulha e uma tinta qualquer. Tudo isso moldava o caráter.
Eu assistia a todos jogos em casa, e algumas vezes aos jogos fora. Nesses jogos como visitante era absoluto perigo, como se você estivesse entrando em território inimigo e pedindo para levar uma surra. Uma vez fui assistir o City em Middlesbrough, e do momento que eu saí do ônibus eu percebi o erro. Depois do jogo os torcedores do City foram colocados atrás de uma cerca no estacionamento, e cerca de 200 torcedores do Middlesbrough começaram a gritar e tentar deburrar essa grade de ferro que nos separava. Não demorou para essa cerca ir abaixo, as grades também cederam e essa horda de monstros do rival correndo atrás de nós. Foi pânico total. Nessa correria eu acabei como todo mundo no meio de umas ruas paralelas: todo mundo gritando e a polícia montada tentando acalmar o tumulto. Eu corri o máximo que eu consegui e no meio da confusão acabei sozinho, meio que num beco.
Nisso tudo um torcedor do Middlesbrough correndo em sentido contrário foi parar bem na minha frente no final da rua. Nos olhamos por alguns segundos sem saber o que fazer. Eu não queria apanhar, mas também não queria bater em ninguém. Observei o inimigo: provavelmente da mesma idade e ele estava assustado; a gente estava na mesma situação. Por instinto eu coloquei as mãos para cima indicando que não estava a fim de problemas e ele deu um passo a frente e estendeu a mão.
Então ele estendeu o cachecol vermelho e branco que estava amarrado no pulso e disse “cê tá a fim de trocar, mano?”. Roubar o cachecol da torcida adversária num jogo fora geralmente era sinal de conseguir o escalpo numa batalha. Eu peguei o cachecol dele, estendi o meu pra ele em troca, demos um tapinha nos ombros e caminhamos na direção oposta. Corri feito um louco por mais algumas ruas até que consegui uma carona de torcedores do City numa van indo de volta para casa.
Eu fui em outros jogos fora e fui perseguido algumas outras vezes, mas nunca mais consegui outro cachecol e nunca mais precisei dar o meu em outra. Em alguns jogos do City eu vestia aquele cachecol do Middlesbrough. O pessoal pensava que era um troféu, mas eu sabia a verdade e gostei do jeito que eu consegui.
Por Johnny Marr, em seu livro Set the Boy Free (não-publicado no Brasil)
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PRORROGAÇÃO — OU Coisas que também valem mencionar
Manchester City e trio lendário, isso existiu mesmo?
Summberbee, Lee e Bell estiveram nos quatro títulos importantes do City das vagas magras. O Campeonato Inglês, em 1968, e três copas: a Copa da Inglaterra, em 1969, e a Copa da Liga Inglesa e da (extinta) Recopa da Europa, em 1970. Colin Bell foi o mais famoso, até fez um gol contra o Brasil (num amistoso) e jogou a Copa de 70.
Já Mike Summerbee jogou ao lado do Pelé…
Só que no filme Fuga para Vitória, aquele em que prisioneiros na Segunda Guerra vencem um jogo contra um time de soldados nazistas. Aquele timaço com Bobby Moore, Ardiles, Pelé e Sylvester Stallone (!) no gol.
O então maior City da história era vermelho…
Apesar do seu tradicional uniforme azul, todas as três Copas vencidas pelo clube entre 1969 e 1970 foi jogando a final literalmente de…vermelho. A ideia do técnico Malcolm Allison, por pura superstição, era imitar o Milan, o então campeaõ europeu e italiano. Ele achava que o uniforme impunha respeito. E meio que até deu certo, porém…
… o Manchester United foi campeão europeu azul!
Naquele pequeno período onde o City ganhou mais, o primeiro título europeu de um clube inglês foi conquistado pelo United em maio de 1968 (isso foi, inclusive, duas semanas depois do City ganhar o título inglês). Na final contra o Benfica, em Wembley, o Manchester United de George Best jogou de azul. Fóm!
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