Palestina e a revolução do futebol
Dez anos atrás a Palestina fazia a sua primeira partida de Copa do Mundo em casa. Esse é um relato da epopeia, excerto do livro inglês Thirty One-Nil
Tajiquistão. Junho de 2011
O vestiário de azulejos é silencioso e quente. Um aparelho de ar condicionado está ligado no máximo, uma batalha contra os 40 graus de temperatura. Os jogadores da seleção Palestina de futebol sentam-se com as costas contra a parede, de camisetas e calções verdes. Cada um veste um keffiyeh preto e branco em volta do pessoço, o lenço famoso por Yasser Arafat. Alguns optam por fechar os olhos, levantar as mãos e orar. Outros simplesmente olham para a única coisa que se move na sala.
O técnico Moussa Bezaz, um franco-argelino que representou a França nas categorias de base e está há dois anos no comando da seleção, caminha pela sala, com o cuidado para não fazer muito barulho. Depois de uma palestra final e apaixonada, ele não tem mais o que dizer aos seus jogadores. Ele sabe que seus jogadores precisam desse momento. O silêncio é quebrado pelo comissário da partida. É hora do jogo. Equipe e comissão técnica juntam os braços em um círculo e começam a orar. ‘Fi-lis-teia!’, grita um dos jogadores. E todo mundo grita de volta.
O caminho da Palestina nas elinatórias da Copa do Mundo de 2014 começa aqui, em um estádio decrépito no oeste do Tadjiquistão, contra o Afeganistão – que, tecnicamente, joga em casa. A eliminatória deveria ser disputada em Cabul, mas a falta de segurança era tão grave que foi transferida para Tursunzode, uma cidade que cheira a alumínio a poucos quilômetros na fronteira com o Uzbequistão. Alguns dias antes, houve dois atentados suicidas no Afeganistão, e não dava pra saber se o time iria sequer aparecer para o jogo. Mas os afegãos estão aqui, e fazem uma fila no túnel do estádio. Os jogadores se olham com desconfiança. É a primeira vez que as duas equipes consegue ver contra quem estará jogando. São quase totais desconhecidos.
“Come on guys, let’s do this”, grita Omar Jarun com um sotaque sulista americano. Jarun é um zagueiro de mais de um metro e noventa, com um moicano loiro, de Peachtree City, perto de Atlanta, na Geórgia. Ele nunca viajou à Cisjordânia e não fala árabe, mas o seu avô é de Tulkarem, uma pequena cidade ao norte de Jerusalém. Ele foi convocado jogando pelas ligas semi-amadoras dos Estados Unidos, depois que a Associação Palestina de Futebol lançou uma busca global por jogadores na diáspora. Esse é um microcosmo da experiência palestina. O lateral-esquerdo Roberto Bishara é chileno e joga pelo Palestino, um clube da primeira divisão construído por regugiados palestinos na América do Sul, após a criação do Estado de Israel em maio de 1948. Ele também não fala árabe. Ou muito inglês. Ou francês.
O meia Hussam Abu Saleh é um árabe israelense, descendente de palestinos que optaram por ficar em Israel. Ele fala hebraico e possui um passaporte israelense. Ele jogou vários anos pelo Bnei Sakhnin, o único clube árabe na primeira divisão de Israel, mas decidiu sair e jogar na liga da Cisjordânia para representar melhor a Palestina. O goleiro, Mohammed Shbair, é de Gaza. Ele é a cara de Iker Casillas, e não pode ir para casa faz dois anos. As restrições de viagem para Israel são tão grandes que ele precisa de uma permissão especial para deixar a Cisjordânia, onde joga. Uma vez seus documentos não estavam em ordem depois de um amistoso no Sudão, e ele teve a entrada negada em Israel; passou três meses exilado na Jordânia.
Que a Palestina tenha uma seleção nacional é um milagre; é uma seleção nacional sem uma nação. A FIFA reconheceu a seleção da Palestina em 1998, uma das poucas organizações internacionais a fazê-lo. Mas a segunda intifada interveio e o time ficou no limbo: sem poder jogar em casa, entre Gaza e a Cisjordânia, e impedida por Israel e Egito de viajar pra jogar fora, com os jogadores sendo barrados na saída do país. Mas para as eliminatórias da Copa de 2014 isso mudou.
O futebol na Palestina se tornou uma pequena revolução, e tem sido usado como veículo político pela Autoridade Palestina para que a entidade seja reconhecida. A segunda partida contra o Afeganistão será no estádio Faisal al-Husseini, em Ramallah, o primeiro jogo na história da Palestina jogando em casa.
Uma semana antes
Futebol internacional pode ser glamuroso, com craques e hotéis cinco-estrelas, mas não por aqui. A seleção Palestina está na Jordânia para uma semana de treinamento antes do vôo para o Tadjiquistão, um total de 18 horas via Dubai. Para qualquer um desses times se classificar para a Copa do Mundo já seria difícil, e as condições logísticas seria um desafio até mesmo se eles tivessem alguma estrela do futebol.
Para começar, para cada jogador palestino, a única saída permitida da Cisjordância é através de um vôo para a Jordânia. Vários jogadores já foram detidos por israelenses no passado, na saída para alguma partida. Nas eliminatórias para a Copa de 2006, cinco jogadores foram barrados ao tentar sair de Gaza e Cisjordânia, para um jogo no Catar, em campo neutro. Palestina perdeu de 3 a 0.
Desta vez a FIFA e a Federação Asiátia colocaram uma pressão extra em Israel para isso não deixar de acontecer. Quase todo mundo chegou sem problemas. Quase. “Fiquei na fronteira por sete horas”, lamenta o técnico, Moussa. “Eu disse para eles [os guardas da fronteira em Israel], ‘eu sou o técnico da seleção da Palestina’, e o guarda olhou para mim e disse; ‘Seleção NACIONAL? Espera aqui.’ Esperei lá por sete horas”. Outros jogadores não tiveram a mesma sorte.
Muitos jogadores palestinos vem de Gaza, mas desde que a milícia islâmica do Hamas assumiu o controle da região, Israel e Egito tem barrado a saída de todo mundo com “idade de guerra”. O zagueiro Abdelatif Bahdari, considerado o melhor jogador palestino, foi mandado de volta na fronteira em Gaza pelos egípcios, que tem barrado qualquer homem entre os 18 e 40 anos temendo atos extremistas e de milícia, após a revolução no Egito. Bahdari seria desfalque na partida de ida.
No aeroporto, Moussa encontrou o seu lateral-esquerdo pela primeira vez, após uma longa viagem do Chile. Eles tentam uma conversa, mas Roberto Bishara só fala espanhol e não entende nada. Incerto de como falar com o seu jogador, Moussa apenas deu um soquinho no braço. Eles ficam lá de pé, sem falar nada, e um silêncio constrangedor. Moussa aponta para um sinal no chão e diz “good”, em inglês. A conversa estava encerrado e os dois vão em direção ao portão de embarque.
Os palestinos viajam em oito passaportes diferentes: alguns têm o passaporte preto da Autoridade Palestina, outros uma permissão especial para sair de Gaza, e assim jogar na recém formada liga da Cisjordânia. Muitos tem o passaporte israelense. E outros, do resto do mundo: Chile, França, Jordânia e Estados Unidos. Omar Jarun está “em casa”, um lugar onde ele nunca esteve na vida. “A primeira impressão de muitos são ‘Quem é esse cara? Como raios ele pode ser Palestino’”, ele afirma. Pergunto qual foi a reação dos outros jogadores quando ele se juntou ao grupo. Ele aponta para os companheiros e diz: “Todos me receberam como se eu fosse um irmão. Não como se eu fosse um forasteiro aqui. Ninguém julga o outro.”
Omar nasceu no Kuwait, filho de uma americana com um palestino (nascido na Jordânia) e imigrou com a família durante a Guerra do Golfo, quando Sadam Hussein invadiu o país em 1990. “Lembro das bombas explodindo. Mísseis voando perto do apartamento. Lembro de pegar um ursinho de pelúcia e correr com a minha irmã para o quarto do meu pai”, ele conta. “A minha mãe deu um jeito da família inteira conseguir uma entrada nos EUA. Deixamos tudo pra trás. Não tínhamos nada”.
Omar é muçulmano, e apesar da primeira impressão, e a sua aparência branquela de americano, ele se considera um árabe. Ele reza toda sexta-feira na única mesquita de Peachtree City, num hotel. Ele aprendeu futebol com o pai, e como qualquer menino, sonhava em jogar pela seleção dos EUA, mas quando a Palestina ofereceu uma convocação, ele não pensou duas vezes. “No meu coração eu sou árabe, palestino. Eu sei o que acontece com as pessoas de lá, e acredito que o mundo precisa saber que o povo da Palestina é suprimido como um rato numa gaiola”, ele diz. “Eu não sei como poderia ajudar, além do futebol. Então quando me disseram que eu poderia jogar pela seleção Palestina, eu disse sim na hora”.
A Palestina venceu o jogo de ida por 2 a 0, no Tadjisquistão. Os jogadores se abraçavam e dançavam no gramado como se a classificação já estivesse garantida. Moussa teve de correr no gramado, gesticulando para os jogadores. “Parem com isso, a gente ainda não está clássificado”, gritou, temendo que isso poderia incentivar o Afeganistão para a partida de volta. Mas parecia improvável que os afegãos fossem ao menos jogar a partida de volta, dado a restrição do próprio governo, sem contar as forças de segurança em Israel. O capitão do Afeganistão, Israfeel Kohistani, que não tem quatro dedos da mão ao segurar uma granada não-detonada quando era criança, não estava confiante. “Não sei se vamos ou não”.
Ramallah, Cisjordânia
O Estádio Faisal al-Husseini é pequeno, mas é a casa palestina. Ônibus cheios de torcedores de toda a Cisjordânia chegam duas horas antes do início, passando pela barreira de separação, a cem metros do estádio. Policiais de choque vestidos com armaduras e capacetes, alguns carregando metralhadoras, se preparam para a maior partida da história da Palestina. O jogo vai muito além do campo de futebol.
Durante dois anos, a Autoridade Palestina esteve ocupada construindo as bases para um estado independente: uma economia forte, um serviço público forte, e uma força de segurança capaz de enfrentar qualquer conflito interno - como um jogod e futebol. E parte da estratégia envolve, principalmente, futebol.
O homem responsável pela Federação Palestina de Futebol é Jibril Rajoub, um dos mais poderosos da Cisjordânia. Ele passou 17 anos em uma prisão israelense por atirar uma granada em um posto de controle do exército. Na prisão, ele aprendeu a falar hebraico fluentemente e, após sua libertação, rejeitou a violência como meio de alcançar a condição de Estado palestino. Ele se tornaria o conselheiro de segurança de Yasser Arafat, na Cisjordânia, e um dos membros mais graduados do Fatah.
Para ele, a seleção nacional de futebol é mais uma forma de mostrar ao mundo que os palestinos podem cuidar de si memso. “Em 2006 não tínhamos futebol, nem competições, nada; agora houve uma revolução na Palestina”, ele diz. “Isso tem uma dimensão política e acho que ter um estádio em casa reconhecido pela FIFA é a prova de que a condição de Estado é possível. Eu acredito que o esporte poderá ajudar nisso ”, ele me disse na manhã do jogo, no único hotel cinco estrelas de Ramallah.
Ele tem uma presença imponente, com costas largas, peito largo, careca e bigode. Ele fala em voz baixa e rouca. Agora é um homem de paz, afirma, mas não é alguém que você gostaria de contrariar. “Acho que esta partida é uma mensagem clara para a comunidade internacional de que a Palestina é capaz, colocando-a no mapa do esporte pela primeira vez”, diz ele. “É o primeiro jogo de eliminatória de Copa do Mundo em território palestino, sob proteção da Autoridade Palestina, pela polícia palestina. Toda a participação será nossa, de sangue e carne. É história sendo feita.”
O retrato de Rajoub está pendurado no alto do Estádio Faisal al-Husseini, ao lado de fotos de Yasser Arafat com o Domo da Rocha ao fundo - o icônico santuário de Jerusalém construído no local do Segundo Templo do Judaísmo, considerado o terceiro local mais sagrado do Islã. Ao lado delas, estão as fotos do presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas e Sepp Blatter, cuja decisão de permitir que a Palestina se junte à FIFA será, sem dúvida, o maior legado de sua carreira.
Os torcedores enchem as arquibancadas, com ingresso a cinco shekels (cerca de 8,50 reais). Centenas de membros da imprensa de todo o mundo também estão aqui para ver a história sendo feita. No vestiário palestino, os jogadores estão em silêncio. Ahmed Keshkesh, que deveria começar no banco, saiu furioso do hotel da equipe e não foi mais visto desde então. O treinador Moussa novamente anda silenciosamente ao redor da sala, agora de camisa, gravata e paletó. Novamente, eles dão os braços em um grande círculo e começam a orar. Desta vez, todos se beijam. Moussa cumprimenta cada um e deseja sorte em seu próprio idioma. Ele chega até Roberto Bishara e, incapazes de se comunicar em nenhuma língua, se abraçam.
A multidão barulhenta de 10 mil pessoas ruge a favor dos palestinos. É um jogo desconexo no início, como se o peso da expectativa estivesse afetando o desempenho da equipe. A Palestina acaba saindo na frente e quando o Afeganistão empata, há um breve clima de nervosismo no ar. Mas todo mundo está esgotado. O calor, a viagem, a pressão, os líderes do governo no estádio, tudo isso faz com que, no final, as equipes mal consigam chutar a bola. Até o fim do jogo é confuso, e demora algum tempo para a multidão perceber que o árbitro soprou o apito final. Dois jogadores afegãos desmaiam e são levados ao hospital. Quase não há comemoração quando os palestinos voltam para o túnel. Eles ficam em silêncio, como se fossem os vencedores de uma guerra de desgaste. Mas mesmo assim, os vencedores.
O fim do sonho
Menos de um mês depois, os dois jogos contra a Tailândia tem tudo o que os palestinos se acostumaram: viagem sem fim, fronteiras, cansaço, esperança e, por fim, fracasso. No primeiro jogo em Bangkok, os tailandeses, que era franco-favoritos no confronto, levam uma vantagem de 1 a 0 para a Cisjordânia.
Na volta, os palestinos até saíram na frente com uma jogada brilhante iniciada e finalizada por Murad Alyan, o atacante que trabalha em um hospital na Cisjordânia. Os tailandeses marcaram logo em seguida, garantindo um gol fora de casa crucial, o deixando os palestinos na obrigação de fazer dois gols. A Palestina fez um gol aos 45 do segundo tempo, e os palestinos ainda tiveram quatro minutos para salvar sua Copa do Mundo. Mas nos acréscimos, os tailandeses empatam praticamente no último chute do jogo. Termina 2 a 2 e a Palestina é eliminada.
É um final triste para os palestinos e também para o técnico Moussa Bezaz. Mais tarde, ele seria demitido, apesar da campanha briosa, mas no fim, mal-sucedida. Em julho de 2011, três anos antes do Brasil, a chance de chegar às finais da Copa do Mundo em 2014 já acabou para quase 30% dos países.
Na casa do avô de Omar Jarun, ele vai de quarto em quarto filmando, todo animado, para enviar para a família, na Geórgia, EUA. “Cara, tem uma parreira de uva do lado de fora. E um macaco também!”, ele narra. É uma casa grande, de dois andares, com uvas e um pé de limoeiro no jardim, a mesma árvore que o avô costumava catar limões quando Omar era criança. Jarun Jarun nos leva até o terraço, quinze quilômetros da costa do Mediterrâneo. Prédios em Netanya, uma cidade litorânea de Israel, podem ser visto à distância. Tel Aviv também é claramente visível. O horizonte é um contraste entre algo próximo, e uma distância impossível.
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Por James Montague, parte do livro (com edições do tradutor) Thirty One Nil - On the Road with Football’s Outsiders: a World Cup Odissey (nunca lançado no Brasil).
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PRORROGAÇÃO – Ou Coisas que valem mencionar
O palestino mais americano do mundo...
Omar Jarun jogou pela Palestina entre 2007 e 2014 e hoje é técnico nas categorias de base do Atlanta United. O técnico Moussa Bezaz atualmente é assistente técnico da seleção do Líbano. O chileno Roberto Bishara jogou 26 partidas pela Palestina e quase 14 anos no seu clube, o Palestino, antes de se aposentar.
A conexão Palestina e América do Sul...
O pequeno clube de Santiago fundado pela diáspora palestina foi campeão chileno apenas duas vezes, a última em 1978. O líder da equipe era ninguém menos que o zagueiro Eliás Figueroa, após sua passagem pelo Inter.
E a seleção Palestina, a quantas anda?
Nas eliminatórias da Copa do Mundo de 2018, ela foi eliminada em terceiro lugar no grupo com Arábia Saudita e Emirados Árabes. Para a Copa do Mundo de 2022, atualmente é a lanterna do grupo, e também já praticamente eliminada. Na Copa da Ásia, em 2015 a Palestina se classificou pela primeira vez na história, e repetiu a dose em 2019. Passou os dois torneios sem vencer um jogo.