O histórico jogo que tentou unificar a Alemanha
Três meses antes da separação das duas Alemanhas, 25 mil pessoas se reuniram a favor da unificação. O ponto alto do evento, claro, foi um jogo de futebol
Em julho de 1949, três meses antes da fundação oficial da Alemanha Oriental, milhares de pessoas das duas partes da Alemanha se reuniram em um campo aberto em Hönbach, para uma manifestação a favor de uma Alemanha unida. O ponto alto do evento, um jogo de futebol entre o VfL Neustadt e o ZBSG Industrie Sonneberg.
Neustadt bei Coburg e Sonneberg são cidades vizinhas alemãs, uma na Baviera, e a outra na Turíngia, ambos com economia baseada na indústria de brinquedos – o Museu Nacional dos Brinquedos fica em Sonneberg. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, porém, e a divisão da Alemanha em quatro zonas de ocupação, os laços cultivados ao longo dos séculos ficaram cada vez mais difíceis.
Já em julho de 1945, o distrito de Hönbach, um meio do caminho entre as duas comunidades, foi declarado uma "zona proibida" pelo Exército Vermelho e, nos anos seguintes, a fronteira entre a Baviera (ocupado pelos Estados Unidos) e a Turíngia (ocupada pela União Soviética) ficou quase impenetrável. Cerca de 1.6 milhão de alemães fugiram da zona de ocupação soviética e se mudaram para o oeste e as fronteiras entre o leste e oeste seriam então chamadas de “fronteiras verdes” – um Muro de Berlim muito antes do Muro de Berlim.
Um dia sem controles e assédio
Barreiras bloqueavam as estradas que ligavam as cidades, mas a “fronteira verde” só foi ser rigidamente monitorada por patrulhas policiais após a divisão oficial dos países, em outubro de 1949. A fronteira em Hönbach havia sido reaberta em maio, e semanas depois, em 31 de julho, a manifestação ocorreu no que anos depois seria conhecido por historiadores como “a faixa da morte”.
Cerca de 25 mil pessoas de Neustadt e Sonneberg cruzaram a fronteira em ambas as direções naquele dia de verão, pela primeira vez desde 1945 sem ser impedidas por controles e assédio da polícia. Dois dias depois, o jornal de Coburg noticiou o evento incomum: “As multidões se aglomeraram caminhando a pé pelas ruas. Um retrato pacífico de gente vestida para um dia de domingo, e a satisfação de finalmente poder visitar os tantos amigos, conhecidos e familiares do outro lado”.
Cerveja forte, palestras e jogo de futebol
Nesse contexto de “manifestação popular para abrir as fronteiras”, de acordo com a reportagem do jornal local, eram vistas lado a lado bandeiras da URSS, Alemanha, e dos EUA. Políticos das duas partes da Alemanha fizeram discursos sobre o “espírito da fraternidade alemã”, com muita salsinha na grelha e cerveja à vontade. “A coisa toda parecia uma grande reunião de família”, dizia a reportagem. A felicidade, porém, durou pouco. A fronteira só permaneceu aberta até às 20 horas depois do jogo, mas antes disso, porém, teve o verdadeiro destaque do dia.
Após o último discurso, os jogadores do VfL Neustadt e do recém-criado Sonneberg disputaram um amistoso. Ambas as equipes estavam se re-erguendo naquela época. O VfL Neustadt chegou a disputar a primeira divisão na Liga da Baviera, e o futebol em Sonneberg também se recuperava gradualmente do rescaldo da guerra – o time foi dissolvido em 1945, restabelecido um ano depois e então renomeado como ZBSG Industrie Sonneberg em 31 de julho de 1949 - ou seja, no mesmo dia em que os jogadores de futebol da cidade chegaram a Hönbach.
A fronteira entre as duas zonas de ocupação, que viria a ser apenas três meses depois, Alemanha Ocidental e Alemanha Oriental, foi marcado pela linha do meio do campo. Os jogadores dos dois times tinham uma espécie de “visto” para cruzar livremente entre os dois lados do campo, assim dizia a lenda – tecnicamente, a fronteira permaneceu aberta o dia todo, mas não vamos estragar uma boa história.
Futebol e uma mensagem de paz
O jogo terminou com uma vitória do “leste”, Sonneberg por 2 a 0. Não foi o último amistoso, mas é considerado o mais simbólico entre equipes da Alemanha Ocidental e Oriental. Antes do jogo, as duas equipes carregavam uma bandeira. “Queremos a unidade da Alemanha!”, dizia o banner do Sonneberg, enquanto os jogadores do Neustadt carregavam um banner dizendo “E nós também!”.
Foi o assunto do mês em ambos os lados da fronteira. Pouco antes da construção do Muro de Berlim, em agosto de 1961, havia um intenso intercâmbio esportivo entre Neustadt e Sonneberg. Todavia, o último amistoso aconteceu em 1960 e dali em diante, as fronteiras foram fechadas com arame farpado, e as “faixas de morte” começaram, inclusive com sistemas de auto-disparo, impedindo novos encontros entre os times até 1989. Durou pouco, mas o duelo memorável em 31 de julho de 1949 fez que com por alguns 90 minutos uma Alemanha unida seria possível.
Anos de ouro para os jogadores de Neustadt e Sonneberg
Em 1954, o VfL Neustadt subiu à segunda divisão nacional (na época, a Oberliga Sul), até a Bundesliga ser introduzida em 1963. O recorde de público foi inclusive contra o Bayern de Munique, em 1956, com 11 mil pessoas – sim, o Bayern estava na segunda divisão. Após ser rebaixado até das Liga da Baviera em 1965, porém, o VfL desapareceu do futebol, até voltar a ativa em 2003 – o time se fundiu com a vizinha TBV Wildenheid e está na Kreisliga, oitava divisão alemã.
Já o Sonneberg disputaria a terceira divisão da Alemanha Oriental sob o nome BSG Motor Sonneberg. A cidade, que possuía a maior fábrica de ferrorama da Alemanha, começou a construção de um estádio para 30 mil pessoas, mas a proximidade com a fronteira ocidental - Sonneberg estava na chamado “zona de exclusão” - bem como a dissolução da terceirona, desmoronou o plano. O estádio foi inaugurado em 1963, totalmente inacabado, para apenas 4 mil pessoas (foto).
Após a queda do Muro de Berlim em 1989, o BSG Motor foi novamente renomeado, e é 1. FC Sonneberg, desde 2004 – atualmente na sexta divisão da Alemanha.
Por Leandro Vignoli, um original Corneta Europa
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PRORROGAÇÃO – OU Coisas que valem mencionar
Antes do muro caiu a ponte...
Após a queda do Muro de Berlim, em novembro de 1989, a fronteira da "Ponte Queimada", no distrito de Sonneberg, foi aberta e as barreiras removidas. Foi literalmente o primeiro local a ser divulgado como passagem de fronteira entre o que antes eram dois países. Oficialmente, a Alemanha virou uma só em 1º de julho de 1990.
Os jogos fantasmas...
Entre 1956 e 1964, o Comitê Olímpico não permitiu a entrada de duas Alemanhas nas Olimpíadas, e as confederaçãos de futebol das duas partes decidiram fazer uma eliminatória entre eles, sem público, a portas fechadas, para decidir qual seleção enviar. A Ocidental venceu em 1960, a Oriental venceu em 1964.
A potência olímpica...
Já com a autorização do COI, as duas Alemanhas se enfrentariam nas Olímpiadas de Munique, em 1972. Vitória de 3 a 2 pro leste (que seria medalha de bronze), com 80 mil pessoas no Estádio Olímpico - é quase impossível achar imagens daquele jogo na internet. Ajudado pelo status “amador” do bloco soviético, a Alemanha Oriental ainda seria ouro no futebol nas Olimpíadas de 1976, e prata, em 1980.
Já no Copa do Mundo...
A Alemanha Oriental jogou sua primeira e única Copa em 1974, e enfrentou a poderosa Alemanha Ocidental, os donos da casa. Foi o único jogo ao vivo e televisionado entre as duas seleções. Vitória histórica do leste em Hamburgo, por 1 a 0, mas com um pequeno detalhe. Com o resultado, a Oriental caiu no grupo de Brasil, Argentina e Holanda, enquanto a Ocidental no grupo de Suécia, Polônia e Iugoslávia - o que, digamos, facilitou o título da Alemanha Ocidental.
O jogo da paz...
Com a queda do Muro de Berlim e tudo mais, as duas equipes de Berlim se enfrentaram num “Jogo da Paz”, em janeiro de 1990. O Hertha, do oeste, venceu por 2 a 1 contra o Union Berlin, do leste, com 50 mil pessoas no Estádio Olímpico.