Nacionalismo irlandês, religião e os dois O'Neills
Os dois países são como irmãos que foram separados, mas no futebol, a relação entre Irlanda e a Irlanda do Norte anda cada vez mais complicada
Em 2018, o técnico da Irlanda do Norte, Michael O'Neill, acusou a federeção de futebol da República da Irlanda (FAI) e o seu técnico, Martin O'Neill (sem parentesco) de recrutar jogadores católicos norte-irlandeses para jogar pela seleção da Irlanda. O técnico da Irlanda negou. “Falar abertamente sobre religião e trazer isso para esse debate; é muito decepcionante”, disse Martin O'Neill.
A disputa amplifica as complexas questões esportivas na ilha e o papel que a religião desempenha nas equipes. Apesar da divisão oficial da Irlanda em 1921, a maioria das seleções nacionais representam toda a ilha da Irlanda, inclusive o rúgbi e os esportes gaélicos (como futebol gaélico, hurling, camogie). No futebol, porém, cada um tem a sua seleção: a independente República da Irlanda, e a Irlanda do Norte (que faz parte do Reino Unido - e com exceção das Olimpíadas, onde o Reino Unido compete como uma única seleção, Inglaterra, Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte competem separadamente na maioria dos esportes).
A Irish Football Association (IFA), fundada em 1880 para toda a ilha, hoje representa o futebol da Irlanda do Norte, enquanto a Football Association of Ireland (FAI) foi fundada após a separação, em 1921, para a parte sul.
Isso representou uma realidade social na Irlanda: os chamados esportes “ingleses”, como futebol e rúgbi, eram geralmente praticados por protestantes, concentrados no norte; enquanto os católicos, na “Irlanda do Sul”, praticavam esportes gaélicos. Durante anos a seleção de futebol da Irlanda do Norte era apoiada principalmente por protestantes nos estádios, e desta forma os (poucos) jogadores católicos do time muitas vezes enfrentavam abusos e ameaças.
Inclusive, a Associação Atlética Gaélica (GAA) proibia os seus membros de jogar ou comparecer a eventos esportivos "estrangeiros" (ingleses), e a maioria dos católicos na República da Irlanda nem mesmo acompanhava o futebol local. A Irlanda do Norte foi a força dominante no futebol durante aquele período, classificando-se para as Copas do Mundo de 1958, e a sua “ótima geração”, em 1982 e 1986.
No entanto, depois que a GAA suspendeu essa proibição aos esportes “estrangeiros”, o futebol se tornou mais popular no sul e a sorte dos dois times mudou. Foi a República da Irlanda que se classificou para as Copas do Mundo de 1990 e 1994.
(Recentemente, as duas seleções estiveram na Euro de 2016, pela primeira vez juntas em um torneio internacional. As duas foram eliminadas nas oitavas).
O fim da proibição teve mais um efeito: mais católicos também passaram a jogar na seleção da Irlanda do Norte. O duelo dos técnicos O'Neills é um bom exemplo disso. Os dois são católicos e os dois representaram a Irlanda do Norte como jogadores. Martin O'Neil jogou nas décadas de 1970 e 1980, e foi o capitão da seleção na Copa do Mundo de 1982. Já Michael O'Neil, o mais novo, jogou pela Irlanda do Norte no final da década de 1980 e início da década de 1990, sem sucesso.
Martin, o mais velho; e Michael, o mais novo.
Apesar desta visão mais liberal por parte dos dirigentes, no estádio a Irlanda do Norte ainda é apoiada principalmente pelos protestantes, enquanto a minoria católica do país tende a apoiar a seleção da República da Irlanda.
Passaportes e nacionalidades
Qualquer pessoa nascida na ilha (norte ou sul) pode jogar pela seleção da Irlanda. No caso contrário, a lei é um pouco mais “restritiva”: cidadãos irlandeses com pelo menos um avô nascido na Irlanda do Norte também podem jogar pela equipe da Irlanda do Norte (ou seja, quase todo mundo). E já que ter um avô da mesma nacionalidade também é suficiente para os requisitos da FIFA, as duas seleções também podem se utilizar da enorme diáspora irlandesa espalhada em todo o Reino Unido, especialmente na Inglaterra e na Escócia (o veterano Aiden McGeady, que jogou duas Eurocopas pela Irlanda, nasceu na Escócia).
As regras também significam que um jogador possa atuar nas seleções de base de uma nação, e trocar para a outra antes de fazer sua estreia na idade adulta. (Todavia, uma vez que jogue na seleção principal, é muito difícil mudar de seleção.)
"A FAI [Federação Irlandesa] está atrás de apenas um tipo de jogador: o católico", disse Michael O'Neill ao jornal The Irish Daily Mail, antes de reclamar que alguns dos jogadores norte-irlandeses que fizeram a troca nunca foram sequer chamados pela Irlanda. “Qual o sentido de pedir a um jogador que mude de seleção, uma decisão que afetará todo o seu futuro, e não convocá-lo? Eu posso listar 10 jogadores que tomaram essa decisão e nunca jogaram pela República [da Irlanda]”.
Existem, atualmente, três jogadores de alto nível que jogaram na seleção juvenil da Irlanda do Norte, mas desde então optaram pela República, todos eles de Derry, uma cidade na fronteira, com muitos católicos: James McClean (Stoke City), Shane Duffy (Celtic) e Darron Gibson (ex-Everton).
“Espero que Martin [O’Neill] e eu consigamos algum tipo de acordo de cavalheiros segundo o qual, se um menino representou a Irlanda do Norte com idade entre 17 e 21 anos, a FAI não peça a ele para mudar de seleção”, disse O'Neill mais novo.
“Não tenho problema em sentar e falar sobre isso”, disse o O'Neill mais velho, em uma entrevista coletiva. Mas ele nega ter como alvo apenas os jogadores católicos. “Eu gostaria de enfatizar que nunca convoquei ninguém que não fosse pelo mérito. Esse sempre será o caso”, afirmou. “Podemos conversar sobre os jogadores das seleções de base, se for esse o caso, mas trazer a religião para esse debate é muito decepcionante”, concluiu o técnico da República da Irlanda.
Martin O’Neill ainda acrescentou. “Joguei pela Irlanda do Norte por mais de 60 vezes, sendo inclusive o capitão durante o nosso período de maior sucesso [jogando duas Copas]. Não só tínhamos grandes jogadores de ambos os lados dessa divisão política, como era uma grande camaradagem".
O técnico da Irlanda, porém, não negou essa tentativa de fazer os jogadores trocarem de seleção. “A escolha é somente do jogador. Isso é importante e estão esquecendo essa parte. Eles não estão sendo coagidos a fazer isso. Eles estão apenas sendo questionados”, disse o técnico O'Neill mais velho. "Se eu fosse jogador e duas nações estivessem me procurando, acho que eu ficaria muito feliz com isso."
Recenetemente, as duas Irlandas foram eliminadas ainda nas eliminatórias da Euro 2020, e agora se preparam para as eliminatórias para a Copa do Mundo do Catar. Os dois O’Neills foram demitidos de suas respectivas seleções.
Por Charles Collins, originalmente para o Crux Now.
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PRORROGAÇÃO - OU Coisas que valem a pena mencionar
Se um O’Neill incomoda muita gente...
Não apenas Michael e Martin tem o mesmo sobrenome, mas não são parentes, como o nome composto dos dois deixa tudo ainda mais confuso.
O mais novo, Michael, se chama Michael A. Martin O’Neill. Hoje treina o Stoke City.
O mais velho, Martin, se chama Martin H. Michael O’Neill. Como jogador, ele foi bicampeão europeu com o Nottinham Forest em 1979 e 1980.
E no confronto direto?
O jogo mais importante entre as duas Irlandas foi pelas eliminatórias da Copa do Mundo de 1994. Em Belfast, a visitante Irlanda empatou aos 35 minutos do 2T e garantiu a vaga no número de gols (um a mais que a Dinamarca). A Irlanda do Norte já estava eliminada, em quarto lugar no grupo.
Deus Salve a Rainha?
A seleção da Irlanda do Norte toca “God Save the Queen”, o hino do Reino Unido, antes dos seus jogos, ao contrário de País de Gales e Escócia (onde era sempre vaiado). É um dos motivos de quase 100% dos católicos norte-irlandeses torcerem para a Irlanda (pois não reconhecem o Reino Unido).
Quando Inglaterra e Irlanda do Norte se enfrentam, o hino é tocado uma única vez. Na Euro 2016, o País de Gales enfrentou as duas: ouviu God Save The Queen contra a Inglaterra; e God Save the Queen contra a Irlanda do Norte.
Will Grigg is on fire…
Nessa mesma Euro de 2016 viralizou o canto da torcida da Irlanda do Norte para o seu centroavante perna-de-pau Will Grigg. Ele não fez nenhum gol.
E o George Best, onde entra nessa história?
Considerado por muitos o maior jogador britânico da história, Best era claro, norte-irlandês, nascido em Belfast. George Best era (da maioria) protestante, mas de forma geral ele nunca se manifestou politicamente a favor do Union Jack. O time dele de infância, que inclusive o recusou como jogador, era o Glentoran.
Peraí, tem time de futebol na Irlanda do Norte?
Os dois maiores do país, o “Big Two”, são o Linfield e o Glentoran, de Belfast. Mas ao contrário do sectarismo escocês, as duas torcidas são “loyalists” e protestantes ( a camisa do Linfield é azul, exatamente como a do Rangers).
O time católico de Belfast é o pequeno Cliftonfille (o distintivo é um trevo e quase toda torcida também torce para o Celtic). É o clube mais antigo das duas Irlandas. Já na República, o time “grande” é o Shamrock Rovers, de Dublin (que também joga de verde, tem o trevo, e com quase toda torcida torcendo para o Celtic).
E time norte-irlandês na liga da Irlanda, tem?
Sim, o tradicional Derry. Sendo uma cidade de maioria católica na fronteira com a República, no início dos anos 70 muitos times se recusavam a jogar em Derry, com medo de ataques do I.R.A (o grupo extremista que defende uma única Irlanda). Foi em Derry que aconteceu o massacre de “Bloody Sunday”, em 1972, tema de filmes e a música do U2. Quanto ao time, ele acabou abandonando a liga local e, já nos anos 80, passou a jogar a liga da Irlanda (até hojé é o único norte-irlandês).