Berlim, a capital do futebol?
Com vários clubes históricos, torcidas e causos, o futebol em Berlim é muito mais que os resultados em campo. É o fracasso sem perder o entusiasmo, já diria o filósofo
Nenhum time de Berlim jamais ganhou a Bundesliga, e volta e meia surge a questão de porque na cidade mais populosa da Alemanha, no país mais rico da Europa, não existe uma super potência no futebol. Os motivos são todos complexos e subjetivos, entre eles a histórica divisão da cidade após a Segunda Guerra, a grande presença de migrantes de outras cidades e o declínio econômico após a queda do muro. Por exemplo, das trinta maiores empresas da Alemanha, nenhuma tem sede em Berlim. A capital sempre foi, sim, a meca da cena artística da Europa, da explosão do jazz (americano) nos anos 20 e 30, antes da ascensão do Terceiro Reich, ao movimento punk e David Bowie nos anos 70 — cenas avessas ao esporte de massa.
Berlim sempre foi uma cidade à margem, da cena contestadora, e de certa forma dá pra dizer que o futebol seguiu essa linha. A cidade respira futebol, ainda que por vias mais-do-que-alternativas. Não custa lembrar que dos 86 clubes que fundaram a DFB em 1900, mais de um terço eram de Berlim, entre eles o clube mais velho ainda em atividade na Alemanha, o BFC Germania (hoje na décima divisão), e o Hertha BSC, fundado quatro anos depois. A final da Copa da Alemanha é jogada em Berlim desde os anos 80, e a icônica final da Copa do Mundo de 2006, foi lá também.
Entre os primeiros campeões nacionais tem clubes históricos como o Blau-Weiß 1890 e o Viktoria Berlin. E não custa lembrar, também, que logo após a Segunda Guerra, as forças aliadas baniram o futebol no país, e vários clubes foram extintos. Antes disso o Hertha chegou a disputar seis finas seguidas do antigo Campeonato Alemão na era pré-nazismo, entre 1926 e 1931 (embora com apenas dois títulos).
Aliás, ao se falar nos times de Berlim hoje em dia, é muito comum ouvir que o Hertha era a representação da Alemanha Ocidental e o Union Berlin, da comunista Oriental. Na prática, nem tanto assim. Em primeiro lugar, por antes da II Guerra não existiam duas Alemanhas. Além disso, durante quase sessenta anos o Hertha jogou no Stadion am Gesundbrunnen, literalmente uma caminhada de 10 minutos de onde seria erguido o Muro de Berlim em 1961 (e que no início, era somente uma tela de arame).
Grande parte da torcida da região de Prenzlauer-Berg ficou para trás. O artilheiro do clube, Klaus Taube, morava na parte “errada” de Berlim e nunca mais jogou pelo clube - ele acabou no pequeno Lichtenberg 47, da parte Oriental. Torcedores do Hertha do leste ainda se concentravam de radinho atrás da tela onde era possível escutar o estádio. Dois anos depois, porém, veio a pá de cal definitiva para a torcida.
A Bundesliga foi inaugurada em 1963 e o Hertha se mudou para o Estádio Olímpico, numa zona afluente de Berlim — e bem longe do muro. A torcida “oriental” do clube era tão significativa que, em 1989, dois dias após a queda do muro, mais de 15 mil pessoas rumaram de Berlim Oriental para assistir o Hertha contra o SG Wattenscheid, pela segunda divisão. Oficialmente, o público foi de 44 mil pessoas, mas em uma promoção do clube, todo mundo com um passaporte da Alemanha Oriental entrou de graça - estima-se mais de 60 mil torcedores no total, no empate de 1 a 1. Cinco meses depois, os dois clubes conseguiram o acesso à Bundesliga.
O Hertha sempre almejou ser o “clube de toda a Berlim” e, em certo sentido, isso era uma verdade. O clube sempre teve uma torcida working-class, ao contrário do bairro do Olympiastadion, e hoje em dia é onde se encontra a torcida mais multicultural dentro do estádio. Apesar do estigma de pequena, a média do Hertha é de 50 mil pessoas por jogo, talvez pouco para lotar os 75 mil lugares no Olímpico — em 2025 o Hertha deve inaugurar um novo estádio, mais compacto. O clube está longe de ser uma potência, mas está longe de ser um fracasso.
O clube dos cinco
Berlim atualmente é a única cidade alemã com dois clubes na Bundesliga, após o acesso do Union Berlin. Na história, cinco clubes de Berlim já disputaram a Bundesliga, outro recorde nacional. A qualidade dos times nunca foi lá essas coisas, mas a capital tem, sim, uma viva e intensa cultura de futebol.
Tennis Borussia é o outro time “famoso” da antiga Alemanha Ocidental, o rival original do Hertha, em parte pelos estádios ficarem a não mais do que cinco quilômetros de distância - o TeBE, como é conhecido, joga no Mommsenstadion, o “Estádio Olímpico” antes da construção do Olympiastadion. Com a tradicional camisa violeta, o clube tem uma das torcidas Antifas mais engajadas da Alemanha. No estádio é muito comum faixas anti-racismo, anti-homofobia e vários dos grupos ultras afirmam ser mais do que uma torcida, mas um braço político.
O Tennis Borussia teve duas passagens apagadas na Bundesliga, em 1974 e 1977, rebaixado em ambas. Foram quatro clássicos contra o Hertha na primeira divisão, e apenas uma vitória. Em 1974, no primeiro Dérbi de Berlim na história da Bundesliga, o Hertha ganhou de 3 a 0, com 75 mil pessoas no Olympiastadion (o time acabou vice-campeão naquela temporada). O último “clássico” aconteceu a mais de 20 anos, em 1999, pela Copa da Alemanha. Após uma venda estapafúrdia para uma empresa de capital de risco (dois antes da regra alemã do 50% +1), o TeBe foi à falência - a empresa, Gottinger Gruppe, também já não existe mais. Hoje o Tennis Borussia é administrado pelos sócios, e tenta se erguer na quarta divisão.
Nesta mesma divisão está o Tasmania Berlim, o clube com a passagem mais insólita na Bundesliga — o Íbis deles. Após o rebaixamento administrativo do Hertha, em 1966, acusado de propina, a DFB colocou o Tasmania no lugar — a contragosto dos rebaixados Karlsruhe e Schalke 04, que entraram no tapetão, viraram a mesma, e desde então a Bundesliga passou a ter 18 times, em vez de 16. Mais de 80 mil torcedores foram ao Olímpico na estreia do Tasmania, uma vitória de 2 a 0 contra o Karlsruhe. Infelizmente, o clube ganharia só mais um jogo o ano todo.
Até hoje o Tasmania detém o recorde na Bundesliga de menos vitórias, pontos (8), menos gols feitos (15), mais gols concedidos (108), nenhuma vitória sequer jogando fora de casa, e 31 partidas seguidas sem vitória. Em 2020, quando o Schalke 04 estava prestes a piorar este último recorde, os torcedores do Tasmania se reuniram nos arredores do Olympiastadion para apoiar o Schalke contra o Hertha. “Esse recorde é nosso!”, dizia um dos cartazes. Com crises financeiras mil ao longo de vários anos, o clube vem em recuperação: em 2019, subiu para a quinta divisão e, em 2020, foi campeão e subiu para a quarta divisão, a Regionalliga NOFV. A camisa da temporada fatídica na Bundesliga, bonitona, virou item de colecionador.
O derradeiro representante berlinense na Bundesliga foi o histórico Blau-Weiß 1890, campeão alemão em 1905 — o segundo campeão nacional. Do sul de Berlim, em Mariendorf, região de classe-média-alta, o Blau-Weiß (que significa, literalmente, azul e branco) disputava a segunda divisão em 1986, onde também estavam os mais tradicionais Hertha e Tennis Borussia. Resultado? O Blau-Weiß 90 subiu, e os dois times de Charlottensburg foram rebaixados! O feito dos azuis-e-brancos rendeu esse vídeo sensacional do cantor Bernhard Brink, o Amado Batista deles.
Na Bundesliga, o time veio armado com Karl-Heinz Riedle, que futuramente faria o gol do título do Borussia Dortmund na Liga dos Campeão. Aos 21 anos, ele deixou sua marca com 10 gols, mas não evitou o rebaixamento. Logicamente, com a queda do muro um par de anos depois, o futebol em Berlim sentiu um declínio econômico imediato (com o dobro da população, a cidade investiu em construção e infra-estrutura, e futebol definitivamente não era uma prioridade).
Em 1992, já após a queda do muro, Hertha e Blau-Weiß se enfrentaram pela última vez, na segunda divisão, com apenas 9.300 torcedores num Olympiastadion dilapidado. O Hertha voltaria a primeira divisão só em 1997, e os co-irmãos azuis-e-brancos pediriam falência em 1992. Atualmente está na quinta divisão.
No lado socialista do muro
Os títulos do Dínamo raramente são descritos como relevantes hoje em dia. Sendo o “clube da Stasi”, na Alemanha Oriental foi aquela gandaia, e várias medidas beneficiavam o time. Os árbitros com ambições de FIFA, por exemplo, só podiam apitar fora do país com visto aprovado pela própria Stasi. Todavia, o Dínamo foi deca-campeão nacional com estrelas do calibre de Andreas Thom e Thomas Doll, e existe uma ponta de exagero na ajuda que recebiam em campo — a ajuda era muito mais extra-tempo, que justamente garantia ao clube os melhores jogadores do leste . Na Europa, porém, a coisa sempre foi diferente. A melhor campanha do Dínamo foi as quartas-de-final em 1984, contra a Roma de Falcão e Toninho Cerezo.
“Tudo em Berlim hoje acontece como consequência de séculos de guerra, migração, política e arte”, afirma Jacob Sweetman, torcedor do Union Berlin e fundador da publicação de futebol alemã No Dice Magazine, ao COPA90. O Union claro, era o time da classe trabalhadora, da região industrial de Oberschöneweide - e mais tarde, Kopenick, onde fica o seu famoso estádio. Se o Hertha era o “time de toda Berlim”, as raízes do Union era essencialmente de bairro. E em Berlim Oriental, era o clube mais popular; o torcedor do Dínamo era normalmente funcionário do governo.
A história do futebol em Berlim é dispersa, retalhada e confusa e por isso a a história do Union não é muito diferente. Em 1950, por exemplo, o Union 06 Oberschöneweide foi impedido pelo Terceiro Reich de viajar à Hamburgo, e parte dos membros do clube criaram uma filial no oeste, o SC Union Berlin, com as mesmas cores, que no caso eram o azul e branco. O muro foi erguido só em 1961 e o Oberschöneweide voltaria a ativa em 1966 com um novo nome, FC Union Berlin e novas cores, o vermelho —e é o sucessor mais aceito do velho clube. Todavia, os dois “Union” possuem literalmente as mesmas origens: um manteve as cores originais no oeste; o outro ficou com o estádio, o bairro, a torcida. A versão “ocidental” do Union (na sétima divisão) joga no Potstadion, e inclusive também tem um urso no escudo, referência ao brasão de armas da cidade de Berlim - que hoje também está no distintivo do Dínamo.
Com a re-estruturação das ligas após a queda do Muro de Berlim, em 1989, o Dínamo foi para a terceira divisão e, sem a mãozinha do governo, nunca passou disso - atualmente joga a quarta divisão. Boa parte dos torcedores do Dínamo hoje em dia adotam uma postura de apoio à…extrema-direita — um belo conceito de ironia para um clube que ganhou tudo graças à benção do regime comunista. Outros torcedores discordam da fama neo-nazi “pois até usa panos com frases dos The Smiths” — tá aí outra ironia, visto que Morrissey, o ex-vocalista da banda, tem sido acusado de proferir declarações xenófobas e digamos, ahnnn, neo-nazis.
Nem tudo era muro
Berlim Ocidental era um enclave cujo território administrado por forças do exército e que ficava inteiramente dentro da Alemanha Oriental — a cidade mais próxima da Alemanha Ocidental ficava a quase 190km de disância. É como se Curitiba ficasse inteira dentro do Brasil, mas pertencesse ao Paraguai.
Potsdam, na grande Berlim, era um dos ponto de acesso entre a Alemanha Oriental e Berlim (Ocidental). O estádio do SV Babelsberg ficava literalmente a dez minutos do Glienike Bridge (a ponte dos espiões, caso você tenha visto o filme com Tom Hanks), e durante o regime socialista, o clube mudou radicalmente de uniforme, do azul para o vermelho, e de nome, para Motor Babelsberg vinculado a uma estatal.
Em resumo: Potsdam não é Berlim. Mas como escrevi acima, o estádio do clube é praticamente na fronteira com a capital.
O clube sempre foi um perenial integrante da segundona oriental e hoje é mais um da abarrotada quarta divisão. Os ultras do clube, Fimstadt Inferno 99, são um dos maiores emblemas do anti-fascismo na Alemanha, uma das torcidas antifas pioneiras. Em 2017, num jogo contra o rival Energie Cottbus, o clube foi punido em 7 mil euros após os torcedores invadirem o gramado e pelos fritos de “fora, nazistas porcos” da arquibancada. O SV Babelsberg se recusou a pagar a multa, dizendo em nota oficial que os visitantes passaram o jogo todo gritando insultos racistas e anti-semitas à sua torcida — em 2018, um acordo judicial com a NOFV deixou a multa ser revertida em uma campanha de arrecadação de fundos para apoiar os esforços já existentes do clube para combater o racismo e o extremismo de direita.
A história recebeu ampla cobertura nacional e vários clubes da Bundesliga, incluindo Werder Bremen, Borussia Dortmund, Colônia e Stuttgart, apoiaram a causa do SV Babelsberg. Em 2019, a torcida do St. Pauli ergueu uma faixa em comemoração aos 20 anos de fundação dos ultras do Filmstatd Inferno.
Sete clubes de Berlim jogam na quase berlinense quarta divisão (além dos dois da Bundesliga). Outro dessa leva é o Berliner AK, um clube cententário, mas que desde 2001 está vinculado à comunidade turca - em parte, pelo apoio financeiro do empreiteiro turco-alemão Mehmet Ali Han. Todavia, com a sede do clube longe dos principais redutos turcos de Berlim, Neulkon e Kreuzberb (como o amador Türkiyemspor Berlim), o Berliner AK sofre com uma modesta torcida. Desde 2008 o clube joga em outra rica história do futebol de Berlim, o Potstadion, onde menos de 500 torcedores por jogo aparecem, em média.
O estádio foi sede da eliminação da Alemanha para a Noruega nas Olimpíadas de 1936, diante de 55 mil torcedores. Diz a lenda que foi o primeiro jogo de futebol que Adolph Hitler assistiu na vida, e o último treinado por Otto Nerz, que foi demitido logo após a derrota “humilhante” - como toda pessoa de cargo importante a época, ele era membro do Partido Nazista e foi condenado como prisioneiro de guerra em 1946.
O novo Red Bull?
Para concluir, Berlim ainda conta com um único time na terceira divisão, o já mencionado Viktoria Berlim, que conquistou a quarta divisão com 11 vitórias em 11 jogos (antes do campeonato ser suspenso pela Covid-19). O clube tem as raízes históricas no Viktoria duas vezes campeão alemão em 1908 e 1911, embora a sua recente turbinada tenha mais a ver com dinheiro do que com história.
Após patinar durante oito anos na quarta divisão, em 2018 o clube foi compr…digo, recebeu enorme investimento do Grupo Plateno, a maior rede de hoteis da China, de Alex Zheng, quem em 2016 comprou o Nice, da França (e em 2019 vendeu para o bilionário da petroquímica Jim Ratcliffe, por 100 milhões de euros). Embora com a cláusula do 50% + 1 na Alemanha, que impede um clube de futebol ter a maioria das ações a um grupo de investidores, se tem uma coisa que o RB Leipzig nos ensinou é que cláusulas existem para serem quebradas (curiosamente, o Leipzig foi campeão da Regionalliga em 2013, o mesmo ano em que o Viktoria subiu).
"Como é possível chegar ao topo de outro jeito? É um conto de fadas achar que não se precisa de investidores externos. Fingir que somos os primeiros seria hipocrisia. Jogamos com as regras que outros estabeleceram”, declarou o presidente do clube, Felix Summer, à revista alemã 11 Freunde. “Não somos um clube de quinta categoria. Estamos comemorando nosso 130º aniversário esse ano”.
Sem a licença para jogar a 3. Liga no seu estádio, cuja capacidade é de apenas 4 mil torcedores na região de Lichterfelde (no subúrbio de Berlim), o Viktoria Berlin entrou num acordo para mandar os jogos no tradicional Friedrich-Ludwig-Jahn-Sportpark, o antigo estádio do Dínamo. Ironicamente, o estádio fica onde era antiga Alemanha Oriental, exatamente como aquele do time do energético.
Por Leandro Vignoli, um original da Corneta Press
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PRORROGAÇÃO -- ou Coisas que valem mencionar
E o time do exército, onde foi parar?
Se em Berlim Oriental o Dínamo era o clube da Stasi (a polícia secreta da GDR), o Vorwärts Berlin era o time do exército, seis vezes campeão nacional da DDR-Oberliga nos anos 60. Para evitar o conflito de instiruições, em 1971 o clube foi transferido para a cidade de Frankfurt-Oder, na fronteira entre a Alemanha e a Polônia, à mando do General Mielke, o chefão da Stasi (e do Dínamo). O time ainda existe, e continua nesta mesma cidade, mas agora sob o nome FC Frankfurt.
Manda quem pode…
Lembra o jogador do Hertha que saiu do clube pois morava no leste de Berlim? Então, ele terminou a carreira no pequenino SV Lichtenberg, o outro time de Berlim Oriental não vinculado a uma insituição, e que nunca jogou a primeira divisão. O time joga até hoje em seu tradicional estádio, o Hans-Zoschke-Stadion, vizinho de porta de onde era o HQ da Stasi (e atualmente a sede do Museu da Stasi na Alemanha), e batizado em homenagem a um ex-combatente comunista que lutou contra o Nazismo. Diz a lenda local que o general Mielke ordenou a demolição do campo após testemunhar uma derrota do BFC Dynamo para o Lichtenberg, de uma janela de escritório. O prédio só foi salvo quando a viúva de Zoschke apelou ao chefão máximo do partido comunista, Erich Honecker. Manda quem pode, obedece quem tem juízo.
O adeus de Zidane…
Berlim tem muita cultura de futebol, e não é pouca…