A história do Wrexham e porquê dois atores de Hollywood compraram o clube
Atolado em dívidas e donos gananciosos, o Wrehxam foi salvo pela própria torcida. Agora chegou a vez de Ryan Reynolds e Rob McElhenney tentarem.
De uma hora para outra, o ator inglês Humphrey Ker passou de personagem na série de comédia Mythic Quest à diretor executivo de clube de futebol, só que na vida real. Durante as filmagens do seriado, Ker ocasionalmente passava seus intervalos do almoço assistindo aos jogos ao vivo do Liverpool. Rob McElhenney, ator e criador da série It’s Always Sunny in Philadelphia - e americano -, é um fanático por esportes, mas não conseguia entender o apelo do futebol além de jogar FIFA com os filhos.
“Rob viu o quanto eu e outro cara no set éramos vidrados,” Ker disse à revista Four Four Two. “Mas o interesse real veio durante o lockdown. Eu recomendei assistir a docsérie ‘Sunderland 'Til I Die’ (Netflix) porque sei que ele é um contador de histórias. Para sacar nosso fanatismo, ele precisava entender a história do futebol. Os documentários All Or Nothing são bons, mas a cerne do jogo são os torcedores. Rob sendo do jeito que é, devorou todos os documentários. Ele é do tipo que gosta de fazer, não falar, e um dia me disse: ‘Vamos comprar um clube de futebol’. Eu respondi, ‘Aham, vamos, sim’. E ele retrucou: 'Não, não, eu tô falando sério!'."
Ker estabeleceu então uma série de critérios, entre eles as instalações do clube, base de torcedores, história e, claro, as finanças. O Wrexham foi o que pontuou mais alto na avaliação, que também incluiu uma coluna para a possível “narrativa”.
E história para contar é o que não falta no Wrexham.
O roteiro do clube esteve à beira do precipício, uma queda para a quinta divisão escutas secretas, audiências judiciais, segredos de justiça, criminosos condenados, um produtor de "filmes adultos", até enfim ser comprado pelos dois atores, Rob McElhenney - também conhecido como o Mac de “It's Always Sunny In Filadélfia” - e Ryan Reynolds, do filme Deadpool. Aliás, o próprio anti-herói disse no filme, certa vez: "aparência é tudo! Já ouviu David Beckham falar?”.
O Wrexham já passou por tudo, inclusive muitos dias na escuridão. E como sempre, é uma história em que os principais atores são a sua sofrida torcida...
Os dois vagabundos (ahn, mas não os atores…)
“Isso vai soar um pouco ingênuo, mas queríamos comprar um time que merecesse”, revela Ker. "O Wrexham precisava duma força, os torcedores precisavam duma força e o mesmo se aplica à cidade."
O fundo do poço começou em dezembro de 2004, quando o time galês foi o primeiro da história a ser punido com 10 pontos na pirâmide inglesa do futebol. Sob o reinado desastroso de Alex Hamilton e Mark Guterman, o clube entrou em administração de terceiros, com dívidas de mais de 4 milhões de libras. No final da temporada, eles caíram para a quarta divisão por uma margem de oito pontos.
Entre 1984 e 2002 o clube era administrado por um empresário local, torcedor de infância do clube, Pryce Griffiths, que vendeu o Wrexham por problemas de saúde. Os dois novos donos eram, o mais provável, apenas a fachada de uma empreitera, e Mark Guterman, inclusive, em 1999 já tinha falido o vizinho Chester City – nada menos do que o maior rival do Wrexham! Como a Football League aprovou a compra por um sujeito obviamente duvidoso? Como? Pois é.
Na época do rebaixamento, um grupo de torcedores iniciou a campanha ‘Doe Uma Cerveja’, em que cada pessoa semanalmente doaria o valor equivalente a um pint de cerveja (cerca de £3) para arrecadar dinheiro para o clube. Esse grupo mais tarde se tornaria o Wrexham Supporters Trust (WST), que desempenharia um papel fundamental no futuro dos Red Dragons, os dragões vermelhos.
Também havia torcedores como Lindsay Jones e Kenny Pemberton, um taxista local conhecido como "o homem do táxi rosa". Muito antes da falência, a dupla gravou uma série de reuniões com os proprietários Hamilton e Guterman.
Andy Gilpin, por sua vez, cobriu o Wrexham para a mídia local e nacional e foi brevemente "banido para sempre" por Mark Guterman depois de publicar uma história em que os jogadores estavam com salários atrasados, e a manchete ‘Cash, Bang, Wallop!' [um trocadilho com uma máquina de caça-níquel].
“Um clube de futebol é diferente de outras empresas”, diz Gilpin. “Digamos que você vá a mesma loja de ferragens por 20 anos, alguém a compra e coloca uma hamburgueria gourmet no lugar. Isso não vai mudar sua vida, e você achará outra loja.”
“Mas se você começar a fazer o mesmo com um clube de futebol, isso é uma parte tão importante da vida das pessoas que elas não vão simplesmente ignorar. [Alex] Hamilton não sacou que todos os sábados 100 pessoas estariam em frente à casa dele [protestando]. Ele nunca entendeu a profundidade do sentimento."
Quando Jones e Pemberton tentaram tornar as gravações públicas, as fitas foram apreendidas pela polícia e se tornaram seguedo de justiça. Pemberton gastou 35 mil libras do próprio bolso contestando a decisão, que mais tarde foi reembolsada pelo clube. Houve um acordo com Guterman fora do tribunal, mas a audiência desencandeou os eventos que expulsaria os proprietários tóxicos do Wrexham.
A pior lista de candidatos
Eventualmente, descobriu-se que Hamilton e Guterman haviam feito um acordo - por escrito! - onde diziam que o "único e principal objetivo" de comprar o Wrexham era "realizar o máximo de ganho potencial dos ativos de propriedade do clube". Ao comprar os Red Dragons em 2002, Hamilton imediatamente transferiu o terreno do clube para sua empresa, Crucialmove, na esperança de que uma rede de supermercados pudesse lhe oferecer milhões pelo local no futuro. O Wrexham, então, teria se mudar para um local não especificado na periferia da cidade.
Felizmente, os administradores apontados pela justiça, David Acland e Steve Williams, sabiam da estratégia: eles contestaram com sucesso que Hamilton e Guterman estavam agindo ilegalmente, e um juiz determinou que o estádio Racecourse Ground deveria ser transferido de volta para Wrexham em 2005. Kenny Pemberton, o taxista, faleceu em 2012, mas os torcedores ainda têm um dia em sua homenagem para celebrar o homem que salvou o clube.
Não que as coisas tenham melhorado muito.
Em 2006, o empresário local Geoff Moss assumiu o comando do clube com um plano para transformar o estacionamento em apartamentos para estudantes e, em seguida, investir o lucros de volta no clube. Mas o gestor superestimou as fincanças e, em 2008, o Wrexham foi rebaixado da Football League, para a quinta divisão [técnicamente as ligas semi-amadoras da pirâmide inglesa]. Para evitar as dívidas crescentes, a propriedade do Racecourse Ground foi transferida para Wrexham Village Ltd - uma empresa, curiosamente, que pertencia à Geoff Moss.
Então em 2010 o Wrexham foi colocado à venda e uma série de candidatos apareceu, entre eles Stephen Vaughan, ex-presidente do Chester City (sim, o rival!), a primeira pessoa na Inglaterra a ser reprovado no então criado “teste de aptidão” da FA, que visa aprovar se alguém está apto financeiramente à comprar um clube de futebol. Vaughan não passou no teste por seu envolvimento em mais de 500 mil libras em sonegação de impotos. Poucos meses após a oferta de comprar o clube, ele também recebeu uma pena de 15 meses por agredir um policial em sua garagem.
Outros licitantes incluíram Colin Poole, o CEO da empresa Claims Direct quando ela faliu em 2002, e que mais tarde foi impedido de atuar como advogado; e Stephen Cleeve, o ex-candidato de extrema-direita do UKIP, suspenso de atuar como CEO, após descobrirem um golpe de investimento em pirâmide. Apesar disso, em 2016 ele comprou outro clube, o King’s Lynn, que também joga a quinta divisão.
Outra candidata foi Stephanie Booth: nascida Keith Hull antes de passar por uma cirurgia de mudança de sexo em 1984, ela dirigia um salão de beleza para transgêneros antes de ter a licensa suspensa por serviços de prostituição no local. Mais tarde ela passaria três meses na prisão por vender vídeos de soft porn sem autorização. Booth era uma pioneira na comunidade trans e uma celebridade local, mas acabou desistindo do negócio pela forte rejeição dos torcedores.
"Eu conheço Stephanie há muitos anos", diz Gilpin. “Eu até já fui juiz de um reality show com ela – era uma verdadeira força da natureza. Mas por mais bem-intencionada, você não gostaria dela no comando do seu clube de futebol."
Enquanto isso, o Wrexham Supporters Trust tentava desesperadamente levantar os fundos para administrar o próprio clube. O ex-membro da diretoria e vice-presidente honorário do clube, Spencer Harris, lembra-se da sensação de impotência. “A torcida é sempre golpeada por decisões de algumas poucas pessoas com o poder”, diz ele. "E você entra em uma situação em que não importa o que você faça, ninguém quer ajudar." O futuro do Wrexham estava em dúvida. O dinheiro tinha acabado e, de forma agonizante, parecia que a história do clube também.
Dez rodadas com o Tyson
Antes da temporada de 2011/12, o Wrexham ainda precisava de 100 mil libras do total de 250 mil necessários para pagar a licensa para jogar a liga, ou então ser expulso - e começar do zero. Geoff Moss insistiu que não tinha mais dinheiro para injetar e o prazo para apresentar as provas exigidas havia passado.
Novamente, ficou na mão da torcida, e o Turf Hotel - o local onde o clube foi fundado em 1864 – se transformou no que parecia uma cena daqueles filmes tristes com o final feliz. Um garoto de 10 anos entregou £ 35 para salvar o seu amado clube do coração. Torcedores doaram os seus trocados ou a economia feita para pagar a festa de casamento, e até mesmo as escrituras de suas casas, e o Wrexham atingiu sua meta de 100 mil libras após uma frenética contagem de cada centavo.
Em dezembro, o WST concluiu a aquisição. A Universidade Glyndwr comprou o estádio Racecourse, mas o WST garantiu um aluguel válido por 99 anos.
“O que uniu a torcida foi ter algumas pessoas confiáveis liderando a candidatura”, diz Harris. Um deles foi Barry Horne, o ex-jogador do País de Gales e capitão do Everton no título da FA Cup em 1995, que começou a carreira no Wrexham. “Em vez de sermos reféns da fortuna de outra pessoa não-confiável, foi um momento em que nos unimos e acreditamos que poderíamos fazer isso nós mesmos.”
“Mas sabíamos que seria muito difícil. Quando assumimos, o filme do clube estava queimado com quase todos os possíveis investores da comunidade. Perdíamos cerca de 750 mil libras por ano e tínhamos uma dívida de 500 mil libras. Não tínhamos absolutamente nada em termos práticos e de políticas jurídicas.
“O clube praticamente não tinha receita, com exceção da repentina venda de ingressos. Não tínhamos nem uniforme. E todos nós tínhamos empregos em tempo integral! Foi um esforço monumental de todos, e não apenas do WST."
No espaço de três anos, eles zeraram a dívidas e empataram o prejuízo. Em 2013, o Wrexham foi campeão da FA Trophy, uma espécie de FA Cup apenas para os clube semi-amadores, numa final e Wembley, com 35 mil pessoas.
“Às vezes, o ponto alto de ir aos jogos era contar as pessoas no estádio”, diz Harris. “Se 100 torcedores a mais estivessem pagando £11,40 por ingresso em todos os 23 jogos do ano, isso seria 250 mil libras por ano. Dava sempre um embrulho no estômago fazer o orçamento por volta de abril ou maio. Eu costumava sair da reunião com o diretor financeiro com a sensação de ter passado dez rounds lutando contra o Mike Tyson, e pensando: ‘Precisamos de um algo a mais!”.
E aí aconteceu a pandemia de Covid-19.
“Não tínhamos receita alguma, mas ainda tínhamos custos, e apesar de tudo entregamos um clube sem dívidas [para McElhenney e Reynolds]. Os torcedores do Wrexham querem mais do que um clube apenas jogando as ligas semi-amadoras, mas não conseguimos subir à Football League [ligas profissionais]. Algumas pessoas perdem a fé e isso poderia ser um problema".
Após 12 anos jogando as non-leagues inglesas, havia uma sensação de que o WST havia feito o que podia. A relação entre o conselho e torcida parecia um casamento em que os pais ficam juntos puramente por causa dos filhos. Houve dezenas de ofertas para comprar o Wrexham, mas a maioria delas parecia golpe, afirma Harris. Mas ser um clube sem dívidas pagou dividendos a longo prazo.
Humphrey Ker, o ator que agora atua como diretor executivo do clube, explica que em conversas preliminares com outros clubes era sempre algo do tipo ‘vai custar £ 2 milhões para comprar este clube’. “A decisão era entre pagar £ 2 milhões a um empresário rico ou então colocá-los no orçamento operacional de um clube administrado pela própria comunidade. O objetivo era usá-lo como um motor filantrópico; uma forma de gerar mais positividade e investimento na cidade. ”
Outro legado positivo que o WST deixou foi um compromisso do governo galês de investir em um plano de renovação da região, que incluía a remodelação de uma arquibancada desativada do estádio. "Isso começou em outubro de 2017", diz Harris. “Fomos à Cardiff para mostrar à Assembleia de Gales a distribuição desigual de instalações no País de Gales. Isso deu início à parceria com o Wrexham Gateway. O governo galês já comprou o terreno para que isso aconteça”.
Olha, mãe, estamos na televisão!
Rob McElhenney e Ryan Reynolds completaram a aquisição do clube em fevereiro de 2021. Alguns torcedores, como Gilpin, eram céticos. Queriam evidências de um plano além dos gestos comunitários de boa vontade, e da docsérie Welcome to Wrexham, sobre os bastidores depois da aquisição. “A pergunta que sempre me faço é: ‘eles estão fazendo um documentário ou comprando um clube de futebol?”.
Um dos indicativos de que o projeto é sério foi a nomeação de Phil Parkinson como treinador, de enorme experiência nas ligas menores. Parkinson já conquistou o acesso três vezes e levou o pequeno Bradford à final da Copa da Liga de 2013. “Eu sei da ambição do Wrexham e queria fazer parte de algo assim”, disse à Four Four Two.
“Eu queria ir a algum lugar onde houvesse uma chance real de fazer a diferença. Tive uma ótima conversa com Rob - ele explicou por que eles compraram Wrexham, e a paixão dele pelo projeto me surpreendeu. Um clube de sucesso, especialmente em uma cidade como Wrexham, pode trazer um sentimento de orgulho para a comunidade toda. É uma honra fazer parte disso".
Parkinson, por coincidência, também treinou o Sunderland, embora logo após a conclusão das filmagens do famoso documentário da Netflix. Desta vez, porém, ele estará rodeado de câmeras para a futura docsérie sobre o Wrexham.
“Chegar no início da pré-temporada me ajudou a me acostumar”, diz ele. “Sabemos que eles estarão por perto e sabemos que temos que fazer a nossa parte. Temos que trabalhar juntos para contar a história. Faz parte do pacote geral de compra.
A torcida do Wrexham fala da vitória sobre o Arsenal na FA Cup de 1992 até hoje. Cada vez que encontro a torcida do Bradford, eles falam sobre a nossa campanha na Copa da Liga. É isso que importa. Você quer um pai levando o filho a um estádio lotado e viver algo que ele se lembrará para o resto de suas vidas. Quero criar esse tipo de memória para a comunidade de Wrexham. "
A chegada de Parkinson, junto com o atacante Paul Mullin, que em 2019/20 quebrou o recorde de gols marcados na quarta divisão ao marcar 32 gols em 46 jogos no acesso do Cambridge, fez as casas de apostas colocarem o Wrexham entre os favoritos do campeonato. Mas após treinar o Sunderland, Parkinson same muito bem como é liderar uma equipe que todos querem derrotar.
A essa altura, já estamos acostumados com donos cheios de palavras bonitas e grandes promessas no futebol inglês, para no fim apenas o usar os clubes para negócios imorais. Mas em Hollywood, onde a imagem ainda é tudo, talvez o fracasso ou negócios escusos não seja uma opção para nenhum dos dois atores.
Humprey Ker está tentando educar os chefes em alguns pontos cruciais. “Uma das minhas principais funções é explicar a cultura do futebol para eles. Ambos aprendem rápido, mas eu disse a eles que em algum momento, eles estarão em um aeroporto e alguém vai te chamar de pau-no-cu ou coisa pior. E não faz diferença se você é um cara legal ou não. Isso é apenas futebol. E futebol é vida."
Por Ryan Herman para revista FourFourTwo, tradução Leandro Vignoli
PRORROGAÇÃO – Ou Coisas que valem mencionar
O estádio mais antigo do mundo....
Inaugurado em 1864 para o futebol, o estádio Raceground é o mais velho ainda em uso a sediar jogos de seleções, com a primeira partida do País de Gales sediada em 1877 – atualmente, o estádio tem capacidade para 10.700 torcedores. Na sua história local, o Wrexham venceu a Copa do País de Gales 23 vezes, antes dos clubes galeses jogando na pirâmide inglesa serem proibidos no torneio.
O clássico da fronteira...
Citado no texto, Chester City e Wrexham tem uma rivalidade local de mais de 120 anos (o primeiro clássico foi jogado em 1888). As duas cidades estão separadas por 16 quilômetros, sendo Wrexham no País de Gales, e Chester na Inglaterra. Para muitos, é considerada a maior rivalidade das ligas menores da Inglaterra.
Wrexham até morrer...
A docsérie Welcome to Wrexham, após a publicação deste texto, está em sua terceira temporada no Disney +. Os novos donos deram sorte, o e clube já teve dois acessos na pirâmide do futebol inglês. Atualmente, joga a League One, a terceirona inglesa.