Besiktas e a república do barulho
Terceira parte da reportagem sobre o Besiktas, desdobrando a origem da violência no futebol turco e o ódio contra a torcida do Fernebahce.
Durante grande parte dos anos 70, os estádios do Galatasaray e Fenerbahçe estiveram em obras, e todos os três grandes jogos eram realizados em Inönü, o estádio do Besiktas. Não havia lugares atribuídos, mas a missão da torcida do Beşiktaş era manter seus rivais fora das arquibancadas cobertas, considerada com as melhores vistas. No que ficou conhecido como a “guerra de Inönü”, cerca de 200 torcedores do Beşiktaş dormiam dentro ou ao redor do estádio antes dos jogos. Eles usavam os punhos, paus e pedras e, à medida que as hostilidades aumentaram, canivetes, cutelos de carne e facas do tamanho de uma espada utilizadar para fatiar kebab.
Após o golpe de 1980, a guerra de Inönü passou à clandestinidade. Com as forças de segurança mantendo toques de recolher até as cinco da manhã, não era mais possível passar a noite no estádio. Mas, às 5h01 de todos os dias de jogos, regimentos de torcedores saíam para as ruas. Beşiktaş conquistou as arquibancadas cobertas e Galatasaray e Fenerbahçe voltaram aos seus estádios, mas as brigas seguiram. Em meados dos anos 80, as pessoas estavam usando coquetéis molotov e armas.
“Istambul estava dividida”, disse Ayhan. “Isso acontecia vinte e quatro horas por dia. Vivíamos o hooliganismo sete dias por semana. Ninguém voltava para casa à noite, com medo de que as famílias fossem feridas. Todos dormiam no mesmo lugar. Às três ou quatro da manhã, os telefones começavam a tocar, com notícias de uma griga. Quinhentas pessoas iriam direto para lá, algumas com armas. Você já viu o filme ‘Coração Valente’? Era exatamente assim. ”
“Ninguém aqui tem uma parte não danificada do corpo”, disse Hakan. Ele falava com voz arrastada, mas precisa, e parecia um intelectual tchekhoviano, com óculos, barba e bigode raspados e pele ligeiramente pálida. "Você poderia ir lá com uma espada de samurai."
Em 1991, um torcedor do Beşiktaş foi chutado até a morte por cerca de quarenta torcedores do Galatasaray. Pouco depois, Galatasaray e Fenerbahçe abordaram Beşiktaş com uma oferta de trégua. Ayhan e Hakan lembram que sessenta ou setenta pessoas apareceram armadas no local do encontro, no Parque Abbasaga. “Era como nos filmes da máfia americana”, disse Ayhan. Sob a trégua, que se mantém até hoje, não haveria mais acampamentos fora do estádio, emboscada ou tiroteios na rua. Se você estivesse caminhando com a esposa, ninguém poderia dizer nada a você.
Ayhan pediu outra rodada de chá e, por alguns momentos, o único som foi o tilintar de colheres enquanto os homens colocavam cubos de açúcar no chá. Quando perguntei o que havia mudado nos Çarşi nos últimos trinta anos, Hakan disse: "O que mudou é que os mortos agora superam os vivos." Quinze dos irmãos mais velhos originais estavam mortos, apenas cinco de causas naturais.
“Alguns perderam o olho ou tiveram outros ferimentos nessas guerras do estádio”, disse Ayhan. “Alguns fugiram para outras cidades. Alguns morreram em acidentes, por assassinato, em parques. Mesmo aqueles que morreram de causas naturais - eles definharam por causa do Beşiktaş. Eles se tornaram alcoólatras, sofreram acidentes, adoeceram por negligência e álcool. Os jovens agora assistem aos jogos nas arquibancadas cobertas e não sabem o que isso nos custou”.
Ayhan me levou para assistir a uma partida nas arquibancadas cobertas, um jogo relativamente pequeno contra o Rapid Wien. Era uma noite fria e um pontapé inicial às dez horas. Nas ruas próximas a Inönü, a polícia em capas de chuva pretas bloqueou várias passagens de pedestres.
“Fascistas”, observou Ayhan. Ele me contou que sua primeira partida pelo Beşiktaş foi em 1981, em sua cidade natal, Ancara, e se sentiu inexplicavelmente atraído pelo time. Aos treze anos, ele começou a fazer viagens frequentes a Istambul. Após o segundo ano do ensino médio, ele fugiu de casa e se estabeleceu para sempre em Istambul, onde se tornou parte dos Çarşi - na época, apenas um grupo de fãs do Beşiktaş no final da adolescência e início dos vinte anos.
“Você achou que os Çarşi se tornaria uma coisa tão importante na sua vida?”, perguntei.
"Não. Sempre pensei que seria arqueólogo. ”
Encontramos um lugar nas arquibancadas ao lado da Autobahn, Camel e de alguns veteranos. No aquecimento, a torcida gritava o nome de cada jogador; o jogador chamado corria em direção às arquibancadas e acenava para a torcida.
Ao contrário do amor incondicional de Çarşi pelo Beşiktaş, os sentimentos pelos jogadores são ambivalentes. Há histórias de membros do Çarşi fazendo amizade com os jogadores, primeiro cortando os pneus dos carros deles e depois dando-lhes uma carona para casa; de destruir as instalações dos jogadores e depois aparecer no dia seguinte com baklava e flores.
Em 2002, o campo de treinamento mudou para os subúrbios da Anatólia, e agora o amor passivo-agressivo dos Çarşi é expressado apenas nas partidas. “Você ganha milhões, mas não merece o uniforme”, começa um cântico. “Tire-o e jogue pelado”. Os cantos mais complicados envolvem outros componentes; você se abaixa, então fica de pé, se vira e grita para as paredes do fundo do estádio. Quem não dá as costas para o campo é duramente repreendido: "Se quer tanto assistir ao jogo, eu vou te dar uma TV de plasma."
Durante o jogo do Rapid Wien, as arquibancadas cobertas recitaram vários cânticos anti-Fenerbahçe, parte da tradição não importa qual time o Beşiktaş esteja enfrentando. O canto anti-Fener mais famoso, cantado ao ritmo da música "Those Werde The Days”, consiste em três linhas que prometem o fim dos palavrões no futebol, seguidas do refrão "Mas só uma última vez, chupa o meu pau, Fener."
Inúmeros vídeos no YouTube registram a “Ópera para Fener”, executada por turcos e não turcos, em locais que vão do Vaticano ao Círculo Polar Ártico. Numa versão um francês canta do lado de fora do Taj Mahal e noutra cubanos, em uma praça de Havana, acompanham sua versão com violão e bongôs. Há até uma versão de um paraquedista israelense, gravada no celular depois que ele saltou de um avião. Há algo ao mesmo tempo comovente e perturbador nesse fanatismo em Istambul.
Dois dias antes do Ano Novo, finalmente conheci o Amigo Alen, em seu apartamento, em Üsküdar, um bairro residencial no lado asiático da cidade. A esposa de Alen, Çigdem, uma linda morena de trinta e poucos anos, abriu a porta. Na sala de estar, uma cadeira de rodas dobrável encostada a uma cama de hospital. Uma TV de tela plana foi montada em uma parede, ao lado de um aquecedor gigante até o teto, do tipo usado em restaurantes ao ar livre. Uma gigantesca águia de bronze estava sobre a mesa, sob uma grande fotografia de casamento.
“Olhem isso”, disse ele aos amigos, jogando fora o lençol que cobria suas pernas.
"Isso não é nada", disse Hakan. “Lembra quando Optik foi baleado? Os médicos disseram que ele seria um aleijado. ”
Amigo Alen começou sua carreira como ourives, no Grande Bazar, progredindo de aprendiz a mestre ao longo de dezesseis anos. Dez anos atrás, ele realizou o sonho de abrir um restaurante kebap em Beşiktaş, onde agora trabalha quase todos os dias. A lealdade ao Beşiktaş é uma herança familiar; Alen seguiu os passos do pai. “Noventa por cento dos armênios são fãs do Beşiktaş”, disse ele. “É porque os armênios são artesãos. Beşiktaş é a equipe dos artesãos. ”
Hakan citou um clichê repetido muitas vezes em Istanbul: “Os armênios torcem pro Beşiktaş, os judeus para o Galatasaray e os gregos para o Fenerbahçe”. Ninguém nunca diz para quem os curdos - a maior minoria da Turquia – torcem.
Amigo Alen participou da guerra de Inönü quando tinha cerca de 16 anos. “Abandonei o colégio depois do primeiro ano e tornei-me ativo em Beşiktaş”, contou. Alen se tornou um amigo dos Çarci aos 25 anos. Seu grito de torcida mais adorado é chamado de "Puxando os três": os fãs contam em uníssono até três, batem palmas e gritam "Beşiktaş!" Não ficou claro para mim por que todos amam tanto esse canto em especial, mas imagino que seja pelo senso de unidade.
Ayhan trouxe com ele uma escultura de vidro, um troféu para a Torcida Mais Fanática do Besiktas, que Ayhan aceitou na ausência do amigo. Alen observou que as placas no apartamento eram apenas uma fração do total; o resto estava no depósito ou em seu restaurante kebap.
“Mesmo essa fração já é difícil de limpar”, observou Çigdem.
“Continuo querendo pendurar mais placas e ela não deixa”, queixou-se Alen. "É a Gestapo aqui."
“Não fale bobagem - esta casa está cheia de águias negras!”
Após a visita, Hakan disse sobre o amigo. “O que ele faz não é fácil. Alen sabe como falar, e ele sabe como se controlar. Deixa eu te dar um exemplo. Às vezes, alguém mencionará o genocídio armênio perto dele. Alguém dirá: ‘Oh, eu não reconheço o genocídio’. Eles dizem isso apenas para incomodá-lo. Alen fica branco como um lençol assim que a palavra "genocídio" é mencionada, mas ele não diz nada. Você pode imaginar o que isso significa?”
“Se eu fosse armênio, as pessoas não poderiam mencionar o genocídio ao meu redor”, disse Ayhan. "Eles saberiam que não."
"Alguém capaz de tolerar isso aguenta qualquer coisa”, disse Hakan. “Ele não vai perder a cabeça por causa de algo que um apresentador de TV diz sobre o Besiktas. E ele é um cara muito gentil - incapaz de deixar alguém com raiva dele. É por isso que é tão errado ele ter levado um tiro. Algo assim nunca deveria ter acontecido. ”
Eles falaram sobre como Çarşi estava se tornando popular, e como os jovens agora vêm a eles em busca de conselhos – como a organização Greenpeace, que queriam protestar contra a Otan num evento em Istanbul. Eu me lembrei de um dos slogans mais desconcertantes do grupo, "Çarşi é contra si mesmo."
Depois do jantar, voltamos ao Eagle Café, para saber as novidades sobre as leis de violência no esporte. As medidas anti-hooligan em debate* [que seriam adotadas em 2011 na Turquia] incluíam uma pena de prisão de um ano por levar uma arma a um estádio e dois anos por cantos obscenos, racistas ou profanos.
“Como eles decidem o que é palavrão?” Hakan perguntou.
Deixei os líderes Çarşi debatendo e voltei para o metrô, acompanhado com o Autobahn, que ganhou o apelido por sempre pedir carona para partidas fora de casa. Ele me disse que iria começar a trabalhar em um banner de duzentos metros de comprimento, o maior até então.
Perguntei como era para ele um dia típico de jogo.
“Eu visto um pijama preto e branco para dormir, então, quando me levanto e olho no espelho, é a primeira coisa que vejo”, disse ele. “Então a primeira coisa que me vem à cabeça é que vou encontrar minha amada."
Ele disse que seu amor pelo Beşiktaş é representado por uma antiga expressão turca:
"Eu tenho um problema, e não o trocaria por mil soluções."
Por Elif Batuman, para a revista New Yorker - fevereiro de 2011
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PRORROGAÇÃO - Ou Coisas que valem mencionar
A trilogia…
Confira a parte 1, Besiktas: o cluve do povo, e a parte 2, Besiktas: e a ideologia Çarsi. O texto original, The View from the Stands, está disponível no site da New Yorker.
O genocídio armênio…
Um número estimado de mais 1 milhão de armênios foram mortos pelo Império Otomano, hoje Turquia, durante a invasão da Rússia, na Primeira Guerra Mundial, através de assassinatos em massa e as chamadas “marchas da morte” pelo deserto - sem comida e bebida. Atualmente, 33 países reconhecem os eventos como genocídio, incluindo os EUA, Alemanha, e o Brasil. A Turquia não reconhece.
O barulho que substituiu o jogador…
Foi num jogo do Red Bull Leipzig contra o Besiktas, pela Champions, em 2017, que o alemão Timo Werner pediu para sair de campo aos 30 minutos do primeiro tempo, após se sentir tonto e enjoado por conta do barulho da torcida turca. Ele foi flagrado diversas vezes durante o jogo colocando a mão nos ouvidos.