A goleada mais triste da história
A vitória da Austrália de 31 a 0 sobre a Samoa Americana acaba de completar vinte anos. Essa é a história do que aconteceu e como o goleiro superou o trauma.
Qualquer um que tenha jogado bola já enfrenteu um adversário extramente superior. Aquele jogo onde você se esforça o máximo que pode, mantém a fé, mas o outro time marca um gol atrás do outro, quase sem esforço nenhum. Depois de um tempo, não importa a estratégia, ou os gritos do técnico, só resta rezar para que o jogo acabe e pensar em qualquer outra coisa que poderia estar fazendo.
No futebol profissional, as goleadas implacáveis (aquelas com 10 gols ou mais) são raras, às vezes em uma pré-temporada, ou naquelas partidas nas primeiras fases das Copas nacionais. No futebol de seleções, porém, embora raros, são resultados menos incomuns, já que as nações mais fracas em algum momento enfrentam as maiores - principalmente em eliminatórias para a Copa do Mundo.
E poucas seleções são tão pequenas quanto Samoa Americana. A pequena nação insular com uma população de pouco menos de 60 mil habitantes se manteve na lanterna do ranking mundial da FIFA por quase uma década. E nenhum jogo representa mais essa posição do que o infame Austrália x Samoa Americana, em abril de 2001, pelas eliminatórias para a Copa do Mundo de 2002.
O goleiro Nicky Salapu estreava pela seleção naquele dia.
No intervalo da partida, a pequena ilha já perdia por 16 a 0 para a então potência do continente. Apesar de estreante, Nicky era um dos poucos adultos do time, aos 20 anos - o mais velho da equipe tinha 24. Ele foi, inclusive, o capitão no fatídico dia. Devido a problemas com o visto, o time foi dizimado as vésperas do jogo e, como resultado, Samoa Americana inclui muitos estudantes do ensino médio que, segundo Nicky, nunca haviam jogado uma partida de futebol completa.
“É sério - eles mal sabiam como chutar uma bola”, reveleu para o Four Four Two. “No fim, qualquer um que tivesse um passaporte americano foi chamado.”
O jogo mais solitário da história
Com tantos problemas, a derrota de 13 a 0 contra o Fiji na estreia foi considerado até um pequeno triunfo. Dois dias depois, uma derrota para a vizinha Samoa, a ilha em que Salapu morou quase toda a vida. “Minha vó e uma tia me levaram para Samoa quando eu tinha 3 meses de idade e morei lá até os 19 anos”, releva. “Eu joguei pelas seleções sub-15 e sub-17 de Samoa e os jogos contra a Samoa Americana era sempre uma vitória certa - não era uma rivalidade, era como bater no irmão menor”.
Mas nada disso foi incluído em um daqueles vídeos engraçadinhos da internet que viralizou nos anos seguintes, pois era muito mais engraçado apenas zoar o "pior time do mundo" do que entender as consequências daquilo, para além de um jogo de futebol. Imagine como é estrear pelo seu país com uma derrota por 31 a 0? "Foi exaustivo, não só fisicamente, mas emocionalmente", disse Salapu. "A única maneira de tentar uma defesa foi continuar firme, e tentar motivar a equipe."
Existe uma foto do goleiro naquele jogo, caído no chão. Ele parece ter passado pelo equivalente a um acidente de carro, quase em estado de choque com o que ele e seus companheiros de time foram submetidos em campo.
O australiano Archie Thompson marcou treze gols no jogo, um recorde até hoje em jogos válidos pela Copa do Mundo.
“Eu senti pena dos caras, mas a gente tinha de jogar”, ele diz. “Não foi legal fazer tantos gols de forma tão fácil, mas a gente estava representando o nosso país. Eu não sabia quanto o placar iria terminar, mas seria falta de respeito não dar o nosso máximo também. Aquela semana foi especial, porque a gente estava jogando numa área bem lega da Austrália, ao lado de caras que eu sempre admirei”.
A volta por cima
Caso a história de Nicky Salapu e Samoa Americana terminasse ali, seria uma daquelas mensagens de motivação, auto-ajuda na adversidade, de fazer o melhor não importa as barreiras. Mas a história não acabou ali, como pode ser visto depois no brilhante documentário “O Próximo Gol Leva”, de 2014 (Next Goal Wins).
Em 2011, Thomas Rongen, um técnico holandês radicado nos Estados Unidos, aceitou um pedido da federação de Samoa Americana para treinar o time nas eliminatórias para a Copa do Mundo de 2014. Ao longo de seis semanas de treinamento, ele procurou desenvolver a seleção da ilha. Os desafios foram desde melhorar as dietas dos jogadores até encontrar tempo adequado para treinar, com uma agenda restrita por conta da religião de muitos atletas.
Nicky Salapu havia, inclusive, se aposentado da seleção. Como muitos Samoanos-americanos, Nicky hoje mora nos Estados Unidos, trabalhando como engenheiro em uma firma de segurança da informação. Após anos pedindo licença do trabalho para viajar às suas próprias custas apenas para representar seu país, ele decidiu passar o bastão para a próxima geração. No entanto, após uma conversa com o novo técnico, que implorou para que ele voltasse para uma última tentativa de ganhar o primeiro jogo oficial na história do país, ele aceitou jogar as partidas contra o Tonga, Ilhas Cook e os rivais Samoa, pelas eliminatórias da Copa de 2014.
"Esse cara precisou enfrentar muitos demônios na cabeça”, diz o técnico. “Ele veio totalmente focado em apagar aqueles 31 a 0, para ele, e a sua família. Quando ele menciona que é de Samoa Americana, as pessoas dizem: ‘Você é o cara que tomou 31 gols’. São cicatrizes pesadas.” Salapu ficou tão marcado pela memória daquele jogo, que nos anos seguintes ele jogaria contra a Austrália no videogame, desligando o controle do adversário, só pra ver quantos gols ele conseguia fazer.
“Quero ganhar um jogo; e se vencermos, morrerei uma pessoa feliz ”, Nicky comenta no filme. E o jogo contra Tonga levou o time às manchetes de todo o mundo, dez anos depois dos 31 a 0: placar de 2 a 1 para a Samoa Americana. Para Nicky Salapu, foi mais do que a primeira vitória na história do seu país. Representou uma redenção, e justificou todas as derrotas seguintes – os 12 a 1 contra as Ilhas Salomão, e os 14 a 0 contra Vanuatu, nas eliminatórias da Copa do Mundo de 2010.
A redenção do jogo contra Tonga, assistida apenas por algumas centenas de pessoas ao vivo no estádio, em Samoa, representou tudo para Nicky. “Foi a melhor coisa que eu já senti, aquela felicidade que dá vontade chorar”, ele diz. “Se eu pudesse, eu voltaria e jogaria aquele jogo pra sempre”.
É improvável que Nicky tenha a chance de exorcizar os fantasmas de 2001, em uma revanche contra a Austrália. Na estreia do documentário, em Nova York, a lenda australiana Tim Cahill brincou com Salapu que eles precisavam marcar um amistoso, em forma de jogo beneficente.
A nova geração samoana
Atulamente, Samoa Americana é 192° no ranking de 210 países da FIFA - e já venceu outras duas partidas, desde a vitória conta Tonga. Aos 40 anos, Nicky Salapu estava pronto para as eliminatórias da Copa de 2022, mas o evento foi adiado devido ao Covid. O sonho é passar da primeira fase, onde Samoa Americana acabou eliminada nos confrontos diretos contra a rival Samoa, em 2011 e 2015.
Os últimos dois jogos oficiais da seleção foram pelos Jogos do Pacíficos, em 2019. Derrotas de 8 a 1 para o Tahiti, e 13 a 0 para as Ilhas Salomão.
Nicky Salapu, claro, era o goleiro.
Por Alex Peters no Box to Box, editado com entrevistas para o Four For Two.
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PRORROGAÇÃO – OU Coisas que valem mencionar
E a Austrália ainda foi de mistão…
Nomes mais conhecidos como Mark Viduka e Harry Kewell nem fardaram nos 31 a 0 contra a Samoa Americana. Após os 13 gols feitos, Archie Thompson conseguiu um contratinho com o futebol belga e, depois, o PSV.
Os fregueses…
Das três vitórias da seleção samoana, duas foram contra Tonga. “Pacific Warriors” é um ótimo documentário sobre a força dos países do Pacífico (Tonga, Fiji e Samoa), mas em outro esporte: o rúgbi. Estava no Netflix até pouco tempo atrás.
O próximo gol leva…
O diretor Taika Watiti (de Thor: Ragnarok e Jojo Rabbit) produziu um filme baseado no documentário "Next Goal Wins", com Michael Fassbender no papel do técnico. O filme estava previsto para estrear ainds em 2021.
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